A cada três dias, um caso de racismo é registrado no RN

A cada três dias, um novo caso de racismo é registrado no Rio Grande do Norte. Os dados estão em um boletim da Secretaria da Segurança Pública e da Defesa Social (Sesed-RN), que compilou as ocorrências de discriminação pela cor da pele entre os meses de janeiro e setembro deste ano. Ao todo, foram contabilizados 89 registros no período. No entanto, a falta de denúncias acaba distorcendo a quantidade real de crimes, que seria “muito maior”, de acordo com o Ministério Público. A entidade abriu canais para comunicações de crimes de racismo e incentiva as denúncias, principalmente as que disfarçadas de brincadeiras ou piadas.

O racismo estrutural, conceito complexo, mas que pode ser entendido a partir das agressões além das atitudes individuais, é um dos elementos que contribui para os baixos índices de denúncias, afirma Eduardo Cavalcanti, da 69ª Promotoria de Justiça do Rio Grande do Norte. “Às vezes as pessoas entendem como uma brincadeira, uma pequena ofensa, e não como um crime gravíssimo. Esse número de 89 casos é irrisório diante dos casos que acontecem diariamente, pode ter certeza disso. O que a gente vê é que os casos registrados são geralmente aqueles que têm uma repercussão grande na imprensa ou nas redes sociais”, conta.

Exemplo disso foi o episódio envolvendo o barbeiro Alan Santana, de 33 anos, vítima de ofensas racistas deixadas em um bilhete, dentro de um condomínio em São Gonçalo do Amarante, na Grande Natal. Ao sair de casa para ir almoçar com a família, Alan encontrou um pedaço de papel enrolado na maçaneta do carro com diversas agressões e xingamentos, como “negro fedorento”, “preto horroroso”, “inceto (sic)”, além de ser acusado de ladrão. O caso ocorreu no último dia 1º de outubro e está sob investigação da Polícia Civil.

“Tenho o costume de ir à missa todo domingo de manhã. Cheguei à missa, estacionei o carro, depois subi para casa. Quando deu 13h reunimos a família e fomos almoçar. Ao destravar a porta do carro eu me deparo com um bilhete, que estava enrolada na maçaneta. Aquele maldito bilhete”, relembra. “Fiquei paralisado, aquilo me destruiu. Ainda mais por eu estar com meu filho pequeno, de 7 anos, que já entende a situação porque é muito inteligente. No momento a gente não sabe muito o que fazer porque são várias coisas passando pela cabeça”, diz Alan Batista, que também é empreendedor, dá cursos de formação profissionalizante e acabou de abrir uma nova unidade da barbearia Bahia Club.

Alan disse que procurou as câmeras de segurança do condomínio para identificar quem teria deixado o bilhete no carro, mas foi informado pelo síndico do prédio que as câmeras estavam quebradas. O delegado Normando Feitosa informou à reportagem da TRIBUNA DO NORTE que a investigação está na fase final, mas sem dar mais detalhes. Ao todo, cinco pessoas foram ouvidas. Apesar do choque inicial, o empresário diz que vai levar o caso “até o final” para que o responsável seja punido.

“A pessoa que fez isso conseguiu me desestabilizar, mas só naqueles dois primeiros dias. Hoje sei que irei até o final, não importa o que aconteça. Sou homem, pai, trabalhador e honro minha cor, minha origem. Essa não foi a primeira e nem será a última vez, mas nós não podemos nos calar. Estou tendo muito apoio e estou tomando todas as medidas para que o culpado seja punido. Nós negros, não podemos deixar passar, achar que é brincadeira, porque isso é uma agressão que machuca muito”, diz Alan, que nasceu em Salvador, Bahia, e mora há 12 anos em Natal, onde formou uma família.

É justamente a falta de denúncia o principal desafio no enfrentamento ao racismo no âmbito da investigação e punição dos crimes, diz o promotor de Justiça Eduardo Cavalcanti. “Esse é o grande obstáculo. Temos que provocar essa conscientização na população, é um trabalho que não acontece do dia para noite, então precisamos cada vez mais falar sobre o assunto, para que as pessoas não achem isso normal. É um problema social que precisa ser combatido. É como se a gente aceitasse que houvesse uma hierarquia entre os seres humanos. Não podemos aceitar isso”, diz Cavalcanti.

Os canais de denúncia do Ministério Público do Rio Grande do Norte (MPRN) estão abertos através da Ouvidoria, Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça (Caop Criminal) ou na própria sede da 69ª Promotoria de Justiça (veja como denunciar no fim da matéria).

Diferença entre injúria e racismo

Em janeiro deste ano, uma mudança na legislação brasileira equiparou os crimes de injúria racial e racismo. De acordo com especialistas ouvidos pela TN, a mudança corrige uma distorção e repara uma injustiça. Isso porque, embora o crime de racismo esteja previsto na Lei nº 7.716/1989, uma alteração no texto, feita em 1997, criou uma separação entre ofensa dirigida diretamente a uma pessoa da discriminação contra uma raça. Na prática, até janeiro deste ano, a injúria era considerado um crime menos grave, com possibilidade de extinção da pena, diferentemente do racismo, que é imprescritível.

Eduardo Cavalcanti, da 69ª Promotoria de Justiça do Rio Grande do Norte. Foto: Cedida.

Resumidamente, explica o promotor de Justiça Eduardo Cavalcanti, o racismo é um sistema de crenças e práticas que promove a discriminação racial de forma mais ampla, enquanto a injúria racial é um ato específico a um indivíduo. “Por exemplo, acontece uma situação num supermercado, de uma pessoa chegar e dizer para o caixa que não quer ser atendido por uma pessoa negra. Isso já aconteceu. Ela está ofendendo a individualidade dessa pessoa, a subjetividade. Outra coisa é uma pessoa chegar e dizer que não convive com negros. Isso é racismo porque a pessoa colocou indistintamente. São exemplos de situações segundo a lei antiga”, aponta o promotor.

E complementa: “A lei veio para corrigir esse problema que existia na jurisprudência. Esse artigo de injúria racial lá no artigo 140, parágrafo terceiro, e havia uma divergência imensa. O crime de racismo tem uma pena alta e o para o crime de injúria racial a pena é irrisória. Havia uma discussão se os crimes seguiriam a mesma regra da imprescritibilidade e o STF decidiu isso dizendo que o crime de injúria racial se equiparava ao crime de racismo, e, consequentemente, teria a mesma normatividade.

A alteração legislativa acompanha recentes entendimentos dos tribunais superiores que já vinham afirmando que o crime de injúria racial não prescreveria e que poderiam ser enquadrados como racismo. Antes da nova lei, a pessoa que cometia o crime de injúria poderia responder em liberdade, a partir do pagamento de fiança – o que não é mais possível. Com o novo texto, a pena prevista para o crime de injúria racial – caracterizado quando a motivação é relacionada a raça, cor, etnia ou procedência nacional – que era de um a três anos, passou a ser de dois a cinco anos de reclusão.

A advogada e presidente da Comissão Especial de Promoção à Igualdade Racial da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/RN), Kádia Kelly da Silva, considera a mudança uma grande vitória. “A equiparação do crime de injuria racial ao crime de racismo é uma grande vitória, tendo em vista o aumento da pena para o crime de injúria relacionada a raça, cor, etnia ou procedência nacional. Destaca-se que com a vigência da lei o crime de injuria racial são imprescritíveis e inafiançável, assim como o crime de racismo”, comenta.

Rio Grande do Norte registrou 89 casos de racismo e injúria racial entre os meses de janeiro e setembro deste ano. Foto: Magnus Nascimento.

Como identificar

A advogada Kádia Kelly da Silva explica que é comum práticas racistas estarem camufladas como “brincadeiras” ou atos sutis do cotidiano. “Por exemplo, ao fazer a entrega de um currículo de emprego, ou entrevista de emprego, caso a empresa pratique ato discriminatório para efeito de acesso à relação de emprego ou sua manutenção, a vítima pode denunciar naquele momento em que o crime estiver ocorrendo”, diz.

Estando ou não evidente, a vítima tem o direito de denunciar qualquer forma de ultraje, constrangimento e humilhação. Uma cartilha do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania cita algumas ações que são consideradas agressões:

• Apelidar a partir de elementos de cor e etnia;
• Inferiorizar características estéticas da etnia;
• Considerar a vítima inferior intelectualmente por causa da etnia;
• Ofender verbal ou fisicamente a vítima;
• Desprezar costumes, hábitos e tradições da etnia;
• Duvidar da honestidade e competência da vítima sem provas;
• Restringir acesso às entradas e aos elevadores sociais em edifícios públicos, privados ou residenciais;
• Negar ou dificultar entrada e circulação em estabelecimentos comerciais e órgãos públicos de qualquer tipo.

Como denunciar

A vítima pode procurar a Delegacia de Polícia Civil mais próxima de onde ocorreu o crime para informar o ocorrido. Alguns não sabem, mas você pode filmar o ocorrido, fotografar e angariar testemunhas. Caso o crime seja online, o recomendado é fazer prints das mensagens e dados do agressor para apresentar na delegacia. A vítima também pode procurar diretamente o Ministério Público do Rio Grande do Norte. É possível utilizar o formulário eletrônico, ligar ou mandar mensagem.

Canais úteis

• Ouvidoria do MP: (84) 99994-6057, Rua Promotor Manoel Alves Pessoa Neto, 110, Candelária. Funcionamento das 8h às 17h.
• 69ª Promotoria de Justiça do RN: (84) 99972-1595.
• Polícia Militar: 190.
• Polícia Civil: 181.
• Disque Direitos Humanos: 100.

*Redação Tribuna do Norte

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