Antes críticos da vacina, políticos ‘apadrinham’ início da imunização; em 5 estados, há casos de ‘fura-filas’

Vacinação contra a Covid-19 com a CoronaVac no Maranhão Foto: Pablo Jacob / Agência O Globo

A primeira semana da vacinação contra a Covid-19 no país, com a chegada das doses da CoronaVac em todos os estados, fez disparar uma corrida para exploração política da imunização. Em várias capitais e em cidades do interior, deputados, prefeitos e vereadores — inclusive que mantinham até há pouco tempo discurso negacionista em relação à pandemia — se apressaram a “apadrinhar” a chegada do imunizante perante seu eleitorado e nas redes socais.

Em pelo menos cinco estados — Amazonas, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe — já há sinais de uma interferência política mais grave na vacinação, com gestores de saúde ou pessoas ligadas a eles furando a fila de prioridade para receber a primeira dose. O Ministério Público investiga os dribles nos critérios oficiais.

A busca por visibilidade envolve políticos de diferentes partidos, mesmo que não tenham colaborado efetivamente com a produção ou distribuição das vacinas. Nas redes sociais, quem criticava agora posa ao lado de frasquinhos do imunizante. Até bolsonaristas, que criticavam o fármaco desenvolvido pelo laboratório chinês Sinovac, em parceria com o Instituto Butantan, do governo paulista, saúdam a vacinação.

Convertido

Um dos exemplos de crítico “convertido” é o deputado federal Filipe Barros (PSL-PR). Nos últimos meses, foram frequentes suas publicações para atacar o que chamava de “vacina chinesa de Doria”, defender a alternativa desenvolvida pela Universidade de Oxford e o uso de cloroquina contra a Covid-19. Investigado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), sob suspeita de disseminar fake news, o parlamentar costuma postar em sua conta do Instagram até dez vezes ao dia. No domingo passado, reagiu à aprovação da vacina pela Anvisa em tom jocoso e criticou Doria nas redes.

Quando as doses chegaram no Paraná anteontem, no entanto, Barros publicou foto rodeado de profissionais da saúde no evento de início da vacinação no estado. “Único deputado presente no evento”, orgulhou-se. “Conferindo a entrega das vacinas no Paraná, pagas 100% pelo governo federal do nosso presidente Jair Bolsonaro”, escreveu.

Questionado sobre a rápida mudança de postura, ele afirmou ao GLOBO ser indispensável “combater o vírus chinês” e rebateu as críticas que tem recebido:

— Semanas atrás, havia um governador que ameaçou aplicar a vacina na população, mesmo contra a vontade do cidadão e mesmo sem a aprovação da autoridade sanitária responsável, por puro apego aos holofotes. Isso sim foi feito só para angariar capital político.

Ele é um entre diversos deputados, federais e estaduais, que acompanharam as entregas em suas bases eleitorais nesta semana. A deputada Flávia Arruda (PL-DF) estava presente quando as vacinas chegaram ao Distrito Federal. “Dia histórico e emocionante”, comentou ao publicar fotos em sua rede social. O deputado Coronel Chrisóstomo (PSL-RO) participou da entrega dos imunizantes em Rondônia. Disse no evento que “a chegada das vacinas representa a esperança de que vamos superar esse momento tão difícil do país e do mundo”.

A mudança de discurso coincide com o tom adotado por outros bolsonaristas e até pelo governo federal nos últimos dias. Também investigada no inquérito das fake news, a deputada Bia Kicis (PSL-DF) publicou um vídeo comemorando a entrega das vacinas em 25 estados. Em dezembro, ela espalhou a notícia falsa de que as vacinas poderiam alterar o DNA das pessoas, e chegou a aparecer em um vídeo ensinando a driblar o uso de máscaras em locais públicos. A deputada se referia à Coronavac como “vachina”.

Figura constante em aparições públicas de Bolsonaro, Helio Lopes (PSL-RJ) seguiu a linha dos colegas. Ele reproduziu uma declaração do ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, de que sua pasta “está trabalhando com o Instituto Butantan no desenvolvimento da vacina desde o início”. Em outubro, porém, Lopes havia comemorado a decisão do presidente Jair Bolsonaro de não comprar “a vacina chinesa de João Doria”, dizendo que o povo “não será cobaia”.

Outro que questionava a eficácia da CoronaVac e agora celebra sua aplicação é General Girão (PSL-RN). Em 13 de janeiro, em entrevista a um site de extrema-direita, ele disse que tomar a vacina era como “saltar de um avião com 50% só de chance de abrir o paraquedas”. Cinco dias depois, nesta segunda-feira, ele celebrou a chegada da vacina no Rio Grande do Norte.

Mesmo apoiadores de primeira hora da vacina e do governo paulista têm sido criticados por tentar faturar politicamente com a divulgação da vacinação. É o caso do líder do governo na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), deputado Carlão Pignatari (PSDB). Anteontem, ele participou do início da vacinação ao lado de Doria em São José do Rio Preto, no interior, seu reduto político, e publicou foto no Instagram. “Tive a honra de estar presente nesse momento histórico para todos nós: o início da vacinação no Hospital de Base”, escreveu.

Em nota, o deputado afirmou que divulgaria a vacina independente de qual imunizante fosse aprovado e que “este não é o momento para politizar”. Disse ainda que “qualquer divulgação da vacina está sendo feita para sensibilizar a população de que é segura”.

Irregularidades

Se a corrida pela exploração política está disseminada, já nos primeiros dias surgiram casos de autoridades que furaram a fila de prioridade da vacinação.

Em Manaus, cidade que vive a face mais dramática da crise sanitária atualmente no país, foi aberta uma investigação para apurar suspeita de desvio de doses, após fotos circularem na internet mostrando duas irmãs, da família que comanda uma das maiores universidades privadas da cidade, comemorando o fato de terem sido vacinadas. As duas são médicas, mas foram nomeadas em cargos comissionados na Prefeitura de Manaus na véspera e no dia do início da vacinação na cidade.

As médicas são Isabelle Kirk Maddy Lins e Gabrielle Kirk Maddy Lins. As duas são filhas de Andrea Kirk Maddy Lima, casada com Nilton da Costa Lins Júnior, presidente da mantenedora da Universidade Nilton Lins, uma das maiores de Manaus.

Na terça-feira, as duas fizeram postagens mostrando o momento em que foram vacinadas. As imagens geraram revolta e questionamentos em relação à suspeita de que poderiam ter furado a fila.

— Nós não podemos deixar que grupos prioritários e pessoas com comorbidades que estão à frente de todo esse trabalho com Covid sejam substituídos por outros que têm condições de enfrentar esse trabalho com menos riscos — disse a procuradora de Justiça Silvana Nobre Cabral, coordenadora do Grupo de Covid-19 do Ministério Público do Amazonas.

Em nota, a Prefeitura de Manaus negou irregularidades na vacinação das duas médicas. Segundo a nota, as elas foram nomeadas de forma regular e estão atuando “legitimamente”. O GLOBO não conseguiu localizar as duas médicas.

O prefeito de Itabi (SE), Júnior de Amynthas (DEM), de 46 anos, tomou a vacina no lançamento da campanha na cidade. Em rede social, ele afirmou que foi um “ato de demonstração de segurança, legitimidade e eficácia da vacina, para incentivar a população Itabiense a vacinar-se, tendo em vista os receios existentes a esse respeito — o que não configura um ato de caráter político”.

A cidade de Jupi (PE) recebeu 136 doses, duas delas ministradas para a secretária de Saúde, Maria Nadir Ferro, e para o fotógrafo oficial da prefeitura, conhecido como Guilherme JG. Em nota, a prefeitura informou que afastou a secretária e que “repudia qualquer ilegalidade na não observação do plano estadual e municipal de imunização”.

Em Natal, funcionários da Secretaria de Saúde receberam doses da CoronaVac ontem, como informou o G1. Eles não atuam, porém, na linha de frente do combate à Covid-19. A secretaria primeiro admitiu o que chamou de “equívoco”, mas depois justificou que os servidores vacinados estavam envolvidos na campanha de imunização.

No Piauí, o MP estadual investiga a vacinação dos prefeitos de Guaribas e de Uruçuí. Joercio de Andrade (MDB), de Guaribas, é agricultor e não está no grupo prioritário. Em Uruçuí, o Dr. Wagner Coelho (PP) é médico e alegou fazer atendimentos de pacientes com Covid-19.

O Ministério da Saúde divulgou nota pedindo que estados e municípios sigam os critérios do plano estabelecidos: “Apesar da autonomia de estados e municípios na distribuição das vacinas, a Pasta alerta para a necessidade de seguir as orientações do PNI (Programa Nacional de Imunizações)”. Se comprovadas as irregularidades, prefeitos podem ser processados por improbidade administrativa.

O Globo

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