Avisamos que nível de chuvas não era seguro, diz chefe de pesquisa federal

28.set.2021 - Imagem aérea mostra represa Jaguari, segunda maior do Sistema Cantareira, que opera com nível abaixo do normal - Luís Moura/WPP/Estadão Conteúdo

O climatologista José Antonio Marengo é um dos cientistas mais respeitados do Brasil. Em entrevista ao UOL, ele afirma que os pesquisadores de órgãos de monitoramento federais alertaram o governo ainda no segundo trimestre deste ano de que iríamos enfrentar um período de estiagem severa no Centro-Sul do país.

“Nós já tínhamos anunciado, a partir de abril, maio, de que estávamos entrando em uma estação de estiagem; e as chuvas de 2020 foram fracas, já estávamos em situação de atenção. Os relatórios falavam que não estávamos em um nível seguro”, diz.

Depois de duas décadas de atuação no Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), há cinco anos Marengo é coordenador de pesquisa e desenvolvimento do Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais), ligado ao MCTI (Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações).

O órgão federal é responsável pela prevenção e gerenciamento da atuação governamental em eventuais desastres naturais ocorridos em território brasileiro —entre eles, por exemplo, secas e chuvas. Ele produz análises mensais, além de boletins diários de riscos geo-hidrológicos.

A crise hídrica não é só falta de chuva, mas também gerenciamento –e isso vem dos governos. Por isso a gente fala: a ciência forneceu as previsões todas, mas o governo esperou a última hora para fazer racionamento e cortes.José Marengo, do Cemaden

Ele explica que as previsões para os próximos meses ainda são carregadas de dúvidas. “Parece que está se formando a situação ideal para chuva, mas depois isso para. Estamos tentando entender”, conta.

Leia a entrevista:

UOL – A crise hídrica no Centro-Sul do país deste ano é uma das maiores já vistas na nossa história recente. Ela era esperada e foi avisada?

José Antonio Marengo – Nós já tínhamos anunciado [ao governo]. O Cemaden e o Inpe fazem reuniões mensais para previsão climática e indicações de impactos para Cantareira, Três Marias e outras usinas, por exemplo. E foi avisado de uma situação de estiagem longa, de seca. A crise hídrica não é só falta de chuva, mas também gerenciamento –e isso vem dos governos. Por isso a gente fala: a ciência forneceu as previsões todas, mas o governo esperou a última hora para fazer racionamento e cortes.

Não aprendemos então com a crise de 2001?

Depois de 2001, com aquele apagão, foram construídas várias termelétricas e, agora que faltou chuva, elas entraram em funcionamento. Pelo menos essa parte foi feita, só que a energia é mais cara e, se não chover —esperamos que chova—, teremos um verão quente e podemos entrar em um processo de racionamento de energia, de água.

O problema no Brasil é que a prevenção não é uma cultura. Depois do desastre é que o pessoal age. Por isso que existe muita reunião, debate, entrevistas sobre o que deveria ser feito, e repito: a ciência fez essa parte, mas precisa de implementação dos governos.

Quando vocês souberam e deram o alerta?

Nós já tínhamos ali a partir de abril, maio uma situação de que estava entrando em uma estação de estiagem; e as chuvas de 2020 foram fracas, já estávamos em situação de atenção. Os relatórios falavam que não estávamos em um nível seguro.

Agora, com a estação seca e um consumo de água maior, o governo ligou as termelétricas. Mas a gente não anuncia apagão, racionamento, nada disso! A gente apenas falou que a situação estava necessitando atenção, e nós fazemos simulações. E elas mostram bem que teria que chover muito na estação chuvosa para chegarmos a um nível de 60%, confortável.

Mas as chuvas estão muito irregulares: tivemos novembro e dezembro [de 2020] com chuva menor que o normal, mas choveu muito em janeiro, e os reservatórios encheram um pouquinho. Mas depois veio fevereiro, março e abril com um período de bem menos chuva. Ou seja, foi um sopro de vento e de chuva, mas logo depois confirmou uma seca. Isso é um problema. A irregularidade de chuva é difícil de prever. Quando fazemos uma previsão é para toda a estação, não é para um mês. Isso tem um certo grau de complexidade.

E podemos esperar chuvas para recarregar os reservatórios?

Ainda é cedo para falar, já deveria ter começado. Sistemas meteorológicos que agem em conjunto e que iniciam a estação chuvosa é como ter um carro velho e você estar ligando o motor: ele começa a funcionar, mas que está demorando a ligar. Parece que está se formando a situação ideal para chuva, mas depois isso para. Estamos tentando entender agora por que o ‘carro’ não quer ligar.

Seria um La Niña [que corresponde ao resfriamento em grande escala das águas da superfície no centro e leste do Pacífico equatorial], que tende a produzir menos chuvas no Sul? Mas ainda não temos uma previsão, não sabemos se as chuvas vão começar no momento e demorar um ou dois meses. Temos de esperar a reunião que o Inpe fará na próxima sobre a previsão da próxima estação.

Quando essa chuva deveria começar, em regra?

Climatologicamente, deveria na segunda metade de outubro, primeira de novembro. Isso é uma média, não significa que é exato, é muito difícil dar exatidão.

Então sabemos se o ‘carro’ vai pegar e seguir viagem?

Ele está ligando e parando, ligando e parando. Pelo menos é melhor que não estivesse ligando. Mas não sabemos, ainda é muito cedo para dizer se vai ou não ter viagem.

Então devemos seguir em alerta máximo?

Sim, esse momento é de precaução, até porque, se começar a chover normalmente, teria de chover muito para poder afastar o problema da crise hídrica, encher reservatórios –e ainda não temos esse tipo de informação. O problema não é só saber quando vai começar a chover, mas como vai chover. Ainda não temos essa resposta.

Qual a influência da Amazônia nesse processo?

O transporte de umidade vem da Amazônia –e não estou falando aqui da floresta, mas da umidade que vem do Atlântico e passa pela Amazônia. As pessoas colocam na cabeça de que o desmatamento causou a crise hídrica de São Paulo, e não é assim! Quando chove muito em São Paulo, a floresta continua lá igual. Mas, quando chove muito, ninguém aponta desmatamento.

Mas o desmatamento não traz um cenário de menos chuvas?

De longo prazo, sim. Por exemplo: se o desmatamento continuar por três, quatro décadas, podemos ter mudanças significativas, o máximo de chuvas em poucos dias e longos períodos de seca muito quentes no Sudeste e no Pantanal e aumenta risco de fogo.

A Amazônia tem um papel na reciclagem da chuva, não é só o corte da árvore: é o processo que ela representa. Mais importante que a árvore é o processo de reciclagem. Se as árvores são cortadas e eliminadas, vai ter menos chuva, sim.

A Amazônia então será crucial para o futuro climático de crises?

A Amazônia tem papel crucial, ela faz parte do sistema climático. Mesmo que não aconteça nada com ela, seguirá fazendo parte. E, se você tira uma parte, todo sistema começa a mudar: começam chuvas onde não deveria ter, vem a seca onde deveria ter chuva. A Amazônia é um regulador do clima mundial, mas precisamos analisar detalhes regionais. Se acontecer algo, nós viveremos em todo lugar, no longo prazo, é impacto para todo o mundo.

A crise geral é causada pelo aquecimento global, e o desmatamento pode agravar o processo de aquecimento. E, se tem um problema de aquecimento mais intenso, teremos extremos mais intensos, como chuvas, tempestades, ondas de calor, de frio. Por isso que as medidas no país devem focar na redução do desmatamento.

Em 25 anos de Inpe e Cemaden, essa situação atual é a mais grave que o senhor enfrentou em termos de seca no Centro-Sul?

Ela lembra um pouco a 2001 que teve aqui no Brasil, mas só que agora parecem que os impactos são maiores, porque, com a pandemia, as pessoas ficaram trabalhando em casa. Em 2001, teve racionamento de energia, mas foi a primeira vez que trouxe uma sensação de crise de verdade.

 

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