‘Ciência não é algo que se possa fazer sem dinheiro’, diz presidente do CNPq

Restrições. Segundo presidente do CNPq, órgão corre o risco de não ter dinheiro para pagar nem mesmo as bolsas já vigentes, que hoje giram em cerca de 80 mil Foto: Luiza Moraes

Uma das principais agências de fomento à pesquisa do país, o CNPq pode ter até metade de sua produção comprometida caso o cenário orçamentário para 2021 não seja revertido no Congresso.

Em entrevista ao GLOBO, o presidente da instituição, Evaldo Vilela, afirma que o corte de 5,3% em relação ao ano anterior, previsto no Projeto de Lei Orçamentária (PLOA), juntamente com o fato de quase a metade do orçamento (R$ 696 milhões) estar condicionada à aprovação do Congresso, podem levar a um cenário no qual o órgão não terá dinheiro para pagar nem mesmo as bolsas já vigentes, que hoje giram em cerca de 80 mil.

As restrições no orçamento, disse ele, podem comprometer inclusive a resposta do país à pandemia, uma vez que diversas pesquisas na área estão sendo financiadas pelo órgão.

O Ministério da Ciência e Tecnologia vai ter um corte de orçamento em 2021. Quais as perspectivas do CNPq em relação a isso?

O orçamento seria diminuído para o ano que vem em R$ 200 milhões, conseguimos reverter e temos uma diminuição de R$ 100 milhões, que é muito. O que nos preocupa é que este orçamento está dividido em duas partes. Uma delas, que já está garantida, corresponde mais ou menos à metade. A outra parte, em lei complementar, que é o condicionado que pode ser liberado dependendo da política econômica. Nunca foi tão grande, de R$ 600 milhões. No ano passado foi de R$ 60 milhões, e o Congresso nos liberou. Vai liberar este ano? Se não liberar é uma catástrofe, porque vamos rachar a pesquisa no CNPq à metade. A gente precisa de recurso, porque ciência não é uma coisa que possa fazer sem dinheiro E os níveis de financiamento da pesquisa no Brasil têm caído sistematicamente.

Se não for revertido, o corte incidirá sobre novas bolsas ou sobre bolsas que já existem?

Temos um patamar de cerca de 80 mil bolsas por mês. Esse é o dinheiro que nós temos hoje, R$ 1,3 bilhão que mantém essas bolsas. Se não tivermos esse dinheiro, significa que não vamos poder manter as 80 mil bolsas. É simples assim. Há muito tempo que não temos trabalhado com aumento de bolsa, nem de valor nem de quantidade. Então, é fundamental que a gente tenha esse orçamento para manter isso. O país é muito grande. Desenvolvemos muito a ciência nacional, ela é muito robusta em certas áreas e não pode sofrer esse resvalo. Com as bolsas, a gente descobre e forma os talentos para que a gente possa continuar mantendo e crescendo a robustez da nossa ciência brasileira.

Com a pandemia, aumentou a demanda pela ciência. Nossa resposta à Covid-19 seria mais eficiente caso a ciência tivesse sido preservada?

Sem dúvida. Ciência se faz com talentos, com gente. E gente equipada em laboratórios equipados. Temos uma rede de laboratórios, especificamente na área de saúde, graças a um trabalho bem feito pelo Ministério da Saúde, mas sempre trabalhamos com o mínimo, e com uma coisa que é muito prejudicial à ciência no Brasil: a falta de fluxo. Um ano tem um bom dinheiro, no outro ano não tem aquele dinheiro. Esse sobe e desce do fluxo do dinheiro mata muita pesquisa. Desestimula muito talento, muito pesquisador. Uma vez paralisada, a pesquisa não se recupera. Não é um asfalto que para uma semana e volta daqui a um mês. Nunca tivemos no Brasil uma consciência de que precisamos investir seriamente em ciência. Isso tem altos e baixos, mas precisa se tornar uma constante. Não tem como desenvolver um país se não tiver geração de conhecimento e uso do conhecimento.

Caso o corte se mantenha, considera que não conseguiremos dar respostas eficientes à pandemia?

Com certeza. Se não revertermos esse quadro, se o CNPq ficar restrito à metade de seu orçamento. O dano das pesquisas em andamento é irreparável. Sabemos de todas as dificuldades que os governos estão passando, estadual, federal. A crise econômica é muito séria. E temos um país onde uma pessoa é ajudada com R$ 600, a gente sabe o tamanho da encrenca, do problema, e a gente lamenta muito isso e sabe que o esforço que o governo está fazendo é muito grande, e isso tem impacto na economia. Mas o desenvolvimento científico tecnológico é para frente, abre novos caminhos, e não pode ser fechado.

Caso o Congresso atenda ao apelo de vocês e reverta o corte será possível pagar tudo ou ainda vai faltar dinheiro?

Vai ficar elas por elas. Vamos ficar do mesmo tamanho. Não conseguiremos aumentar nem o valor da bolsa e nem a quantidade de bolsas. Mas a gente consegue avançar. Temos um plano do Conselho Deliberativo do CNPq de fazer melhor, de aumentar a resposta e as entregas dos projetos, no sentido de formar, empregar as bolsas e o fomento para criar mais redes de pesquisa com todas as áreas do conhecimento. A gente não vai fazer do mesmo jeito mais. Estamos combatendo certo conforto que existe no sistema. Temos que fazer com menos dinheiro, fazer mais. Nosso plano é que as pessoas sejam convidadas para um novo modelo de interação entre as áreas, inclusive com a inclusão de jovens doutores, porque senão ficamos dando dinheiro só para os velhos doutores. Os jovens doutores têm habilidades que o mundo não tinha.

Vocês pretendem reservar um número a ser destinado a jovens doutores?

Isso vamos ter que discutir com a comunidade. A gente tem que ter um nível de conforto para as pessoas ingressarem, se for algo muito disruptivo as pessoas não ingressam. É muito importante ter como meta o que esperamos obter. Determinadas áreas vão exigir um aporte maior de jovens doutores do que outras.

Quando essa reformulação deve ser concluída?

Alguma coisa vai mudar para o ano que vem. Não sei dizer o quanto vai mudar, mas a gente tem uma coisa muito certa que no mundo de hoje a mesmice condena, então com base nisso temos que convencer nossos pares de que precisamos mudar. Não pode ter preconceitos e prepotências de dizer “vocês não estão fazendo o certo. O certo é isso”. Tem que construir. Precisamos ter cuidado de não ampliar as ameaças que as instituições têm. É fácil ameaçar mais, o resultado pode ser terrível. Mas se você sinaliza por mudanças, elas fazem sentido.

O Globo

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