‘Denúncias’ sobre votos em nome de mortos viralizaram nos EUA

Eleitor vota em Racine, Wisconsin, nos Estados Unidos

Uma série de afirmações públicas levou muitos americanos a acreditarem que o partido democrata estava usando o registro de pessoas mortas para conseguir votos no Colégio Eleitoral de Michigan durante estas eleições presidenciais de 2020.

A maior parte desses pronunciamentos veio de republicanos, como os membros da família do presidente Donald Trump, ou como o ex-presidente da Câmara Newt Gingrich e o ex-diretor do Serviço Nacional de Inteligência americano Richard Grenell.

Mas, como grande parte das informações falsas que circulam na internet, os discursos veiculados nesta semana por alguns apoiadores de Trump caem por terra diante de um exame mais aprofundado. Uma investigação da CNN, sobre essa reclamação de que houve votos em nome de pessoas falecidas sendo computados, não encontrou um único exemplo disso.

Uma das supostas evidências dessa “denúncia” foi uma lista que circulou no Twitter na noite de quinta-feira (5), contendo nomes, datas de nascimento e códigos postais de eleitores registrados em Michigan. A origem da lista e a identidade da pessoa que a divulgou pela primeira vez são desconhecidas.

CNN examinou 50 dos mais de 14.000 nomes da lista — no caso, os primeiros 25 e depois mais 25 escolhidos aleatoriamente. Analisamos os nomes dessa listagem com o banco de dados dos eleitores de Michigan, para checar se eles solicitaram ou devolveram uma cédula de votação pelo correio. Em seguida, verificamos esses nomes em relação aos registros disponíveis publicamente para ver se eles estavam realmente mortos.

Desses 50, 37 estavam de fato mortos, mas não votaram, de acordo com o banco de dados eleitoral. Cinco pessoas dessas 50 votaram, mas todas ainda estão vivas, segundo registros públicos acessados pela CNN. Os oito restantes também estão vivos, mas não votaram.

A amostra analisada pode não ser expressiva diante dos 14.000 nomes, mas há uma tendência clara: nenhum dos eleitores investigados era um morto que votou. A versão da lista encontrada pela CNN foi removida do site em que estava publicada.

Vídeos virais

As fake news sobre mortos votando em Michigan começaram a se espalhar por meio de vídeos postados nas redes sociais na noite de quarta-feira (4).

Um desses posts mostrava uma pessoa inserindo um nome, uma data de nascimento e um código postal no site oficial das eleições em Michigan. O vídeo mostrava os resultados da pesquisa sobre um eleitor que, apesar de ter mais de 110 anos, supostamente, havia solicitado e devolvido uma cédula de votação com sucesso.

O influencer de direita Austen Fletcher, que também é conhecido pelo nome “Fleccas” na internet, foi o responsável por criar alguns dos vídeos que viralizaram.

O primeiro vídeo de Fletcher, postado pouco depois da meia-noite da quinta-feira (5), mostra uma pesquisa online sobre um eleitor chamado William Bradley, nascido em março de 1902.

“Acontece que ‘William Bradley’, de 118 anos, votou à distância em Wayne County, Michigan”, Fletcher tuitou naquele dia. “Há quanto tempo isso vem acontecendo?”, questionou ainda.

Uma busca em registros públicos revelou que um homem chamado William Bradley nasceu em março de 1902 e morreu em 1984 no condado de Wayne, em Michigan. Mas os registros públicos também mostram que seu filho, também chamado William Bradley e morando no mesmo endereço, está bem vivo — e votou nessas eleições.

O procurador de Detroit, Lawrence Garcia, confirmou à CNN que “um homem com um nome quase idêntico [ao do falecido Bradley] solicitou uma cédula e votou nas eleições primárias e gerais”.

“No momento do registro de sua cédula, no entanto, o voto foi incorretamente atribuído a William Bradley, nascido 118 anos atrás. Foi um erro administrativo”, acrescentou Garcia.

O Bradley mais jovem disse à PolitFact que entrou em contato com a administração pública local depois que o vídeo de Fletcher foi postado na internet, mas disseram que ele “não precisava se preocupar”, porque os mesários verificaram a cédula e havia uma assinatura e data de nascimento correspondentes.

Algumas figuras públicas da direita, incluindo Donald Trump Jr, o ator James Woods e a ativista Candace Owens compartilharam os vídeos de Fletcher, que conquistaram, ao todo, milhões de visualizações no Twitter.

Outros, como Juan Andres Caro, um consultor de políticas da Casa Branca, fizeram seus próprios vídeos reproduzindo a pesquisa de Fletcher. Grenell retuitou o vídeo de Caro, que também teve mais de um milhão de visualizações no Twitter.

A CNN entrou em contato com Fletcher e Caro para pedir um posicionamento. Fletcher não respondeu ao contato e Caro não quis comentar.

A assessora de imprensa do Secretário de Estado de Michigan, Tracy Wimmer, disse à CNN que, em raras ocasiões, erros como esse podem ocorrer diante de “eleitores com nomes muito semelhantes. Às vezes a cédula é acidentalmente registrada no nome de John Smith Sr. quando, na verdade, quem votou foi John Smith Jr., por exemplo”

Wimmer disse ainda que os pedidos de cédulas feitos em nome de eleitores falecidos são rejeitados e que “em caso de erro, o problema pode ser corrigido assim que a equipe seja informada”.

Na última quinta-feira (5), a conta do gabinete do Secretário de Estado de Michigan respondeu diretamente ao tweet de Fletcher, dizendo que se tratava de “desinformação”. Nessa altura, a postagem já havia sido retuitada dezenas de milhares de vezes.

Erros humanos e peculiaridades

Equívocos administrativos, características próprias do banco de dados eleitoral e indivíduos legitimamente longevos muitas vezes podem explicar por que parece que as pessoas estão voltando do túmulo para eleger um candidato.

Eleitores vivos, inclusive, frequentemente enviam cédulas com a data de nascimento incorreta, o que faz parecer impossível o fato de estarem vivos, de acordo com Wimmer. “Nesses casos, ninguém inelegível realmente votou”, disse ela.

Outros vídeos produzidos por Fletcher mostram eleitores que devolveram cédulas de votação e estão listados no site de informações de Michigan como nascidos em janeiro de 1900 ou 1901. Obviamente, não foi isso que aconteceu. Há uma explicação muito mais simples e menos sinistra.

O Diretor de Eleições de Detroit, George Azzouz, explicou à CNN que “a data de 1º de janeiro de 1900 é frequentemente usada no registro eletrônico como um substituto temporário para cédulas que chegam muito em cima da hora no dia da eleição”.

“A informação do espaço reservado para a data de nascimento precisa ser inserida para que o registro de votação valide a entrada”, acrescentou Azzouz.

Um relatório do Government Accountability Institute, de 2017, sobre votações duplicadas também mostra essa explicação. “É importante lembrar que alguns sistemas de registro estadual adotam datas fictícias de nascimento, em caso de falta de dados sobre o eleitor. Geralmente, são datas como 01/01/1900, 01/01/1850 ou 01/01/1800”, dizia o documento.

“A grande maioria dos votos computados no nome de indivíduos que pareciam ter mais de 115 anos, tinham essas três datas de nascimento registradas.”

Uma pesquisa nos registros públicos sobre eleitores que Fletcher não cita em seus vídeos confirma isso. Donna Brydges, apesar de ter 75 anos, tem um título de eleitor com “1901” como ano de nascimento.

Catherine Lewis, a funcionária do município onde Brydges mora, explicou à CNN que “não é incomum que os eleitores em Michigan tenham 01/01/01 registrado como sua data de nascimento no banco de dados de eleitores ativos”.

“O eleitor em questão solicitou legitimamente uma cédula de votação à distância, apresentou sua carteira de motorista emitida pelo estado, junto com seu requerimento, e devolveu o envelope com seu voto devidamente assinado e lacrado, conforme exigido pela lei estadual”, disse Lewis em nota.

“O comitê de fiscais eleitorais, composto por membros republicanos e democratas, não tinha dúvidas de que o eleitor era quem dizia ser ou de que as assinaturas não correspondiam”, disse.

O fato de que essas datas de nascimento apareceram repetidas vezes, por si só, deveria ter sido encarado como um indício de que se tratava de uma questão burocrática.

Afinal, se alguém quisesse trapacear numa eleição usando votos de pessoas mortas sem ser pego, não seria muito inteligente dizer que todas essas pessoas nasceram no mesmo mês e ano, para não mencionar que eleitores com uma idade incrivelmente avançada iriam imediatamente levantar suspeitas.

Por que os mortos não votam

O gabinete do Secretário de Estado de Michigan disse que votar em nome de uma pessoa morta é praticamente impossível.

“No caso improvável de alguém que estava vivo e teve sua identidade verificada quando solicitou uma cédula, mas morreu antes de recebê-la, e outra pessoa tentou votar como ela, a incompatibilidade da assinatura já sinalizaria um problema”, explicou Wimmer.

Na verdade, a CNN relatou anteriormente o caso de um paciente com câncer, de apenas 20 anos, em Wisconsin que votou cedo, mas infelizmente morreu antes do dia da apuração das eleições. Seu voto foi rejeitado pela lei de Wisconsin.

Esse posicionamento também foi apoiado por pesquisas de organizações independentes, como o Brennan Center for Justice — um instituto não partidário, mas com tendência liberal.

“O consenso de pesquisas e investigações confiáveis é de que a taxa de votação ilegal é extremamente baixa e de que a incidência de certos tipos de fraude — como alguém se passar por outro eleitor — é virtualmente inexistente”, observou o instituto em nota.

CNN Brasil

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