‘Depois de um suicídio, não há muita utilidade em sentir culpa’, diz escritor e psicólogo

O psicólogo Andrew Solomon: 'É importante entender que o oposto de depressão não é felicidade. A tristeza autêntica, por boas razões, humaniza' Foto: Divulgação/Annie Leibovitz

A cada quarenta segundos, alguém comete suicídio. A Organização Mundial de Saúde estima que mais de 800 mil pessoas tiram a própria vida anualmente. No Brasil, são cerca de 11 mil casos, segundo oMinistério da Saúde .

A prevalência do problema, no entanto, não acabou com o tabu em torno dele. “É um tema muito delicado. Se você fala demais sobre ele, é um problema; se você fala muito pouco, também”, diz o americano Andrew Solomon, 55 anos, professor de psicologia clínica na Universidade Columbia e autor do recém-lançado “Um crime da solidão – Reflexões sobre o suicídio” (Companhia das Letras).

Nos nove textos compilados na obra, Solomon analisa a morte de celebridades como o ator Robin Williams (1951-2014) e o chef Anthony Bourdain (1956-2018) e fala do efeito de imitação que o noticiário em torno delas causa — houve um aumento de quase 10% no número de casos após o comediante americano se enforcar.

Também trata de casos que lhe foram próximos, como o de um amigo de faculdade — e da culpa que sentiu por não ter conseguido ajudá-lo — e o de sua mãe, que decidiu em comum acordo com a família acabar com a própria vida por conta de um câncer incurável, e o fez em casa, cercada pelos filhos e pelo marido. Essa história, e a da depressão que a sucedeu, já havia sido narrada em seu livro “O demônio do meio-dia — Uma anatomia da depressão” (2001), que venceu o National Book Award de 2001. Marco Aurélio Canônico – O Globo

Misturando dados científicos, experiências pessoais e opiniões pouco ortodoxas  — como a de que há prazer na tristeza, e a de que a privacidade, tão valorizada neste século, pode ser nociva — Solomon busca iluminar um tema obscuro em muitos sentidos. “O suicídio precisa deixar de ser um estigma, tornar-se algo sobre o que as pessoas conseguem conversar. Essa abertura, misturada com compaixão, levará à redução no número de casos”.

Estudos mostram um aumento de suicídios em diversos países, incluindo o Brasil. Aqui, o número de casos entre a população indígena é acima da média da população. Como o sr. vê isso?

Há dois motivos para isso. O primeiro é que os indígenas costumam ser relativamente pobres e têm muitas circunstâncias que são gatilhos para o suicídio, como o sentimento de deslocamento em relação a outros modos de vida. O segundo ponto é que a inclinação para a depressão e o suicídio tem forte influência de aspectos biológicos. Algumas pessoas são geneticamente vulneráveis ao suicídio, e essa vulnerabilidade não está distribuída igualmente na população, pode ser que haja um percentual maior dessas pessoas entre os indígenas.

O sr. escreveu que a imprensa, quando trata de suicídio, costuma procurar razões para o ato. Que impacto a cobertura jornalística pode ter nesses casos?PUBLICIDADE

As histórias de suicídios de celebridades costumam ser noticiadas com espalhafato, o que leva as pessoas vulneráveis a pensar: “Uau, se mesmo conseguindo tudo que Robin Williams conseguiu você ainda pode querer se matar, como posso aceitar que minha vida comum seja satisfatória?”. E isso leva a suicídios por imitação. Depois da morte dele houve um aumento de quase 10% nos casos. Por outro lado, quem tem pensamentos suicidas geralmente está sentindo uma imensa solidão, e o melhor que se pode fazer por alguém assim é encorajar que tenha contato com outras pessoas. Uma maneira de fazer isso é tratar do suicídio abertamente, falando sobre o que fazer quando sentir-se desse modo, como ter consciência do que está acontecendo e buscar ajuda. É importante tratar desse tema corretamente, sem sensacionalismo.

O sr. afirma que as mesmas qualidades que levam uma pessoa a brilhar podem levá-la ao suicídio. Por quê?

Pessoas muito bem-sucedidas tendem a ser perfeccionistas, almejam patamares impossíveis. E celebridades tendem a ser famintas por admiração. Nem os perfeccionistas nem os famintos por adoração conseguem o suficiente do que querem. Pessoas que são muito introspectivas e que tentam entender o mundo e a si mesmo geralmente chegam à conclusão de que o mundo é muito grande e complicado e que elas são pequenas e tristes. Essa auto-investigação pode levar ao desespero. Parte do motivo porquê conseguirmos tocar a vida é que nos ocupamos de coisas triviais, como o que vamos almoçar, em vez de qual é o sentido da vida.PUBLICIDADE

Culturas diferentes abordam esse problema de modos distintos. O metrô londrino, por exemplo, informa os passageiros quando alguém se mata e paralisa os serviços. No Brasil, isso não acontece. Há uma maneira adequada de tratar esses casos públicos?

Eu diria que o importante são as razões por que se fala ou não se fala no que aconteceu. Se no Brasil isso não é informado porque é visto como algo muito horrível, vergonhoso ou capaz de abalar as pessoas, essa cultura do silêncio pode ser nociva. As pessoas precisam sentir que esse tema é algo de que se pode falar abertamente, como se fala de homicídios ou de câncer. A Inglaterra vem gradualmente tratando problemas de saúde mental de forma muito mais aberta, isso é um avanço e a população vive melhor por isso.

O sr. argumenta que a privacidade tem sido superestimada neste século e, nos casos de depressão, é destrutiva. Por quê?

Quem está severamente deprimido e com tendências suicidas costuma se isolar das outras pessoas. Elas podem perguntar se está tudo bem, a pessoa responde que sim e fica nisso, temem perguntar mais e invadir a intimiidade. Isso não é respeitar a privacidade, mas permitir o isolamento, e é aí que os impulsos suicidas pioram. A privacidade de um deprimido nada tem a ver com dignidade, é uma prisão. É possível ser respeitoso e conversar, indicar que aquele não é o melhor caminho.PUBLICIDADE

Escrevendo sobre um amigo que se matou, o sr. disse que gostaria de ter explicado a ele o prazer que há na tristeza. Qual é ele?

É importante entender que o oposto de depressão não é felicidade. Tristeza e depressão são coisas distintas, a primeira é muito valiosa, seria terrível viver num mundo sem ela. Não poderíamos ser humanos sem a tristeza. Estou triste com a atual presidência dos Estados Unidos, com o próximo presidente do Brasil, com a possibilidade de que estejamos destruindo o planeta, com várias coisas. Tudo isso é componente da minha humanidade. Na depressão, você se entristece por não conseguir atender ao telefone ou escovar os dentes, isso não é produtivo. A tristeza autêntica, por boas razões, humaniza. Não é essa outra forma de tristeza insidiosa, que acaba com a vitalidade e leva à depressão e ao suicídio.

Muitas pessoas relataram grande tristeza e mesmo depressão com os resultados das recentes eleições no Brasil. Como se quebra esse ciclo, evitando que vire algo pior?

Meu psicanalista disse que, nas semanas seguintes à vitória de Trump, literalmente todos os pacientes falaram sobre a eleição e relataram estar ansiosos, estressados e sem esperança. É preciso tornar-se ativo, fazer algo além de ficar sentado pensando nessa nova realidade. Não é algo simples de fazer. Esses regimes que surgiram não apenas no Brasil e nos EUA, mas na Turquia, Filipinas e outros países, mostram que muitos dos valores que acreditávamos que a humanidade compartilhava não são comuns a todos, o mundo é periogoso e pode se despedaçar mesmo. Foi um despertar para nós, de certo modo.PUBLICIDADE

O sr. afirma que a sociedade costuma culpar as próprias vítimas por terem depressão. Como se evita isso?

As pessoas culpam os deprimidos porque têm medo de suas próprias vidas interiores, da toxicidade potencial que há nelas. Acusam para tranquilizar-se de que são diferentes e estão seguras. A realidade é que todos temos algum grau de vulnerabilidade à depressão e, em determinadas circunstâncias, ela pode se instalar. É muito prejudicial culpar alguém pelo que é um problema médico e social. Sim, o indivíduo tem um papel a desempenhar para melhorar, mas culpá-lo por estar naquele estado só piora a situação.

O caso mais conhecido de suicídio no Brasil é o do ex-presidente Getúlio Vargas. Ele deixou uma carta-testamento em que explicava sua motivação, dando-lhe um tom político e altruísta. O sr. crê num suicídio por razões altruísticas?

Não conhecia esse caso. É sempre possível que alguém seja altruísta a ponto de colocar a vida em risco ou mesmo tirá-la. Qualquer soldado que se expõe a combate, por exemplo, está assumindo a possibilidade de morrer, em prol de seu país. As pessoas se matam por muitas razões: por terem doenças terminais, por algum desastre financeiro em suas vidas, por quererem que os filhos herdem o dinheiro do seguro de vida.

O sr. afirma que ninguém próximo a alguém que tenha se matado escapa de um sentimento de culpa. Como lidar com isso?

A culpa é intrínseca ao suicídio, e não só para os familiares mais próximos. Quem tem tendências suicidas precisa saber que vai causar um estrago muito maior do que se dá conta naquele momento. Sentimo-nos terríveis por não entendermos como aquilo aconteceu e como poderíamos ter evitado. Mas o peso da culpa geralmente não é muito produtivo. Depois de um suicídio, não há muita utilidade em sentir culpa. Depois de uma tentativa malsucedida, no entanto, é possível agir e tentar ajudar.

Como o poder público deve agir para prevenir o suicídio?

É preciso examinar a população com mais frequência, como fazemos quando temos algum problema no coração ou no fígado. É possível testar as pessoas e identificar aquelas em situação de risco, enviando-as para terapia. O suicídio também precisa deixar de ser um estigma, tornar-se algo sobre o que as pessoas conseguem conversar. Essa abertura, misturada com compaixão, levará à redução no número de suicídios.


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