O Ministério da Justiça, comandado pelo ex-juiz Sergio Moro, ficou escanteado na elaboração do projeto que amplia as situações de excludente de ilicitude durante operações de GLO (Garantia de Lei e da Ordem), segundo mostram documentos obtidos pelo UOL. O projeto seguiu para a assinatura do presidente Jair Bolsonaro sem que os pareceres técnicos e jurídicos da pasta de Moro estivessem prontos.
Por pressão de Bolsonaro, a análise do projeto foi concluída a toque de caixa em 20 de novembro. O projeto seguiu para a assinatura presidencial às 19h53 daquele dia, mas os pareceres do Ministério da Justiça só ficaram prontos aproximadamente uma hora depois. O ministério de Moro também não participou de reunião para discutir o tema, no dia 7 de novembro.
As informações constam em um lote de documentos relativos à tramitação interna do projeto no governo federal obtidos pelo deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP), líder do partido na Câmara, por meio da LAI (Lei de Acesso à Informação). As trocas de e-mail, pareceres e análises foram repassadas à reportagem.
O projeto de lei exime de punição militares e policiais que cometerem excessos culposos —ou seja, sem intenção— e permite que juízes atenuem as penas em casos de ações dolosas (com intenção). Os agentes de segurança também não poderão ser presos em flagrante em casos que passem a ser enquadrados nos novos parâmetros definidos pelo texto.
O projeto estava em discussão no governo federal ao menos desde o começo de novembro, mas ganhou novo fôlego quando a Câmara dos Deputados sinalizou que excluiria do pacote anticrime formulado por Moro a ampliação das situações de excludente de ilicitude —casos em que policiais e militares podem alegar legítima defesa para não serem punidos por ações violentas.
Na manhã de 20 de novembro, Bolsonaro disse a jornalistas que enviaria o projeto sobre as novas regras durante operações de GLO à Câmara ainda naquele dia. A determinação pegou de surpresa seus subordinados, que correram contra o tempo para aprontar a legislação.
De acordo com os documentos, a minuta do projeto de lei foi enviada por e-mail aos ministérios da Defesa e da Justiça pela Secretaria-Geral da Presidência da República às 15h45.
Lívia Gervásio Braga, responsável pela Subchefia para Assuntos Jurídicos da Secretaria-Geral, afirma que o texto seguia para “apreciação e sugestões”, mas destaca que iriam despachar um texto final “em instantes” com o ministro da Secretaria-Geral, Jorge Antonio de Oliveira Francisco. Entre os destinatários, estava João Bosco Teixeira, consultor jurídico do Ministério da Justiça.
Pouco depois, às 16h19, Idervânio Costa, consultor jurídico do Ministério da Defesa, encaminhou o texto final para membros do alto escalão da pasta, entre eles, o general Edson Diehl Ripoli, chefe de gabinete do ministro Fernando Azevedo e Silva.
Na mensagem, Costa —o responsável por fazer a análise legal da medida dentro da pasta— deixa claro que não havia pareceres prontos, mas que a Presidência pressionava para que tudo fosse entregue naquele dia. Ele não sabia nem mesmo qual órgão deveria fazer a análise de mérito do tema.
“A informação é que o PR [presidente da República] quer assinar [o projeto] ainda hoje. Já estamos elaborando o parecer jurídico. A dúvida é quem vai elaborar o parecer de mérito? O EMCFA [Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas]? Peço auxilio ao GM [Gabinete do Ministro]”, escreve, demonstrando preocupação.
A necessidade de que o projeto fosse viabilizado a toque de caixa foi registrada oficialmente em parecer jurídico aprovado por João Bosco Teixeira. A advogada da União responsável pela análise, Priscila Helena Soares Piau, diz que os autos vieram para a avaliação “com solicitação de urgência”.
Projeto chega a Bolsonaro antes de parecer da Justiça
O projeto foi enviado pelo ministro da Defesa para a assinatura de Bolsonaro às 19h53 —antes que as análises do Ministério da Justiça estivessem disponíveis. Os pareceres técnicos são feitos para dar subsídios ao presidente na tomada de decisões. No caso da pasta de Moro, análises sobre a legalidade da proposta foram feitas pela Assessoria Especial de Assuntos Legislativos e pela Consultoria Jurídica.
Já a análise de mérito —que deveria discutir o tema do ponto de vista técnico— ficou por conta da Senasp (Secretaria Nacional de Segurança Pública), órgão máximo na estrutura do Ministério da Justiça no que diz respeito a políticas públicas de redução da violência. Mesmo citando integralmente o texto do projeto de lei e também trechos da Constituição e de outras legislações a respeito do assunto, a avaliação da Senasp tem apenas três páginas.
Temas essenciais no debate público sobre as propostas de ampliação da excludente de ilicitude para militares e policiais não são sequer mencionados, como o possível impacto nos índices de mortes em confronto com agentes de segurança e casos de abuso policial. As avaliações feitas pelo Ministério da Defesa também não contemplam o assunto.
“A minuta do Projeto de Lei apresentada demonstra que o poder público possui preocupação em aperfeiçoar o ordenamento jurídico, no sentido de conferir mais proteção a toda a sociedade, mediante salvaguarda dos militares em operações de Garantia da Lei e da Ordem”, limita-se a dizer a Senasp.
A conclusão da avaliação tem apenas quatro linhas e diz apenas não ter “óbices” à minuta originalmente elaborada pela Presidência.
Para o deputado Ivan Valente, a análise do projeto foi “atabalhoada”, apenas para atender a uma vontade pessoal de Bolsonaro, que teria como objetivo “agradar sua base” nas forças de segurança.
“As coisas são feitas de uma forma atabalhoada visando objetivos políticos. Não é a produção de uma legislação de segurança pública pensada, em que é produzido um parecer jurídico ou um parecer técnico de mérito”, afirma.
Ele também critica a postura do ministro Sergio Moro durante o debate do projeto: “Sérgio Moro foi totalmente conivente, embora eu ache que o Ministério da Justiça tivesse o dever legal de produzir uma análise sobre essa questão”, conclui.
Após a assinatura de Bolsonaro, o projeto foi apresentado no plenário da Câmara no dia seguinte, 21 de novembro, e agora aguarda a distribuição para as comissões temáticas, que irão discutir a proposta no mérito. Ele também passará pela CCJ (Comissão de Constituição e Justiça), onde terá a constitucionalidade avaliada pelos parlamentares.
Governo diz que houve “profundo debate”
Apesar da pressa em concluir a análise do texto, mantido nos moldes do que foi elaborado pela Secretaria-Geral da Presidência, todos os órgãos do governo envolvidos sustentam que o tema foi exaustivamente discutido internamente.
A Secretaria-Geral nega que tenha havido pressão para acelerar o projeto e afirma que “as discussões envolvendo Presidência, Ministério da Defesa e Ministério da Justiça a respeito do PL da GLO (ou retaguarda jurídica) tiveram início em outubro, sendo que as trocas de mensagens eletrônicas se intensificaram a partir de 07/11/19”. Para isso, cita uma agenda no dia 7 de novembro.
A reunião foi comandada pelo assessor especial Eduardo Aggio de Sá e, segundo os registros, durou uma hora.
Participaram da discussão o consultor jurídico do Ministério da Defesa, Idervânio Costa; a coordenadora-geral da Consultoria Jurídica da pasta, Carolina Cardoso; o assessor-chefe adjunto da Presidência, Marcio Vasconcelos; além de Gabriel Prado Leal, representante da Subchefia de Assuntos Jurídicos da Secretaria-Geral da Presidência.
Nenhum representante do Ministério da Justiça compareceu à reunião.
O UOL perguntou aos ministérios se houve outras reuniões sobre o assunto, mas não obteve resposta. Também pesquisou nas agendas de dezenas de autoridades das três pastas no período entre os dias 7 e 20 de novembro em busca de outros encontros sobre o projeto, mas não localizou nenhuma outra agenda oficial.
A Secretaria-Geral diz ainda que, a partir de 7 de novembro, houve trocas de e-mail sobre o assunto. “Deve ser esclarecido que a minuta enviada no e-mail datado de 19/11/2019 foi fruto das discussões entre Defesa, Justiça e Presidência, e apenas foi enviada para ser chancelada pelos ministérios, o que é uma praxe antes do ato ser levado a despacho para o Presidente da República”, diz.
Já o Ministério da Defesa alega ter tido acesso à minuta do projeto de lei “muito antes” do dia 20 de novembro. Diz que “a análise jurídica e de mérito já é realizada durante as discussões da matéria, inclusive com a produção adiantada dos esboços/minutas dos referidos pareceres”, mas não explicou por que o consultor jurídico Idervânio Costa afirmou que as análise não estavam prontas.
“O que é realizado no prazo de quatro horas é o ajuste fino e a revisão final dos pareceres jurídicos e de mérito, compatibilizando-os com a versão final da proposta de PL [projeto de lei], sua assinatura e sua inclusão nos sistemas eletrônicos de tramitação processual”, concluiu.
Já o Ministério da Defesa afirmou apenas que “houve um longo e profundo debate entre os órgãos e Ministérios envolvidos no projeto, mesmo antes da elaboração escrita dos pareceres”.
Sobre o teor de seus pareceres, justifica a ausência de discussão sobre a letalidade por parte das forças de segurança porque as GLOs são “excepcionais”.
“Devido à imprevisibilidade das circunstâncias que poderiam, eventualmente, motivar a decretação da GLO, torna-se impossível realizar o cálculo, sugerido pela reportagem, de um eventual reflexo no número de pessoas prejudicadas por ação policial”, justifica.