Lipodistrofia congênita generalizada; mucopolissacaridose; e paraplegia espástica progressiva, atrofia ótica e neuropática são termos médicos complicados para definir doenças complexas e incomuns. Essas condições afetam uma parcela pequena da população mundial, mas embora sejam consideradas raras, possuem incidências coletivas frequentes no Rio Grande do Norte. São consideradas doenças raras aquelas que afetam até 65 pessoas em cada 100 mil indivíduos, ou seja, aproximadamente 1 caso a cada 2 mil pessoas. No RN existem cidades com incidência de 1 caso para 293 habitantes para determinada doença. O Estado é apontado como a “capital mundial das doenças raras” por especialistas.
Apesar de ser considerado fundamental para o estudo das doenças raras, o Estado não dispõe de um centro especializado para diagnóstico e tratamento, o que é motivo de reclamação constante de familiares, médicos e pesquisadores. Para se ter uma ideia da relevância do Rio Grande do Norte nesse contexto, o Estado concentra 70% dos casos de Síndrome de Berardinelli do Brasil, que se caracteriza pela ausência de tecido adiposo em todo o corpo. Além disso, a Síndrome de Spoan, outra doença rara e neurodegenerativa, foi descoberta em Serrinha dos Pintos, no Alto Oeste potiguar.
No Brasil não existem dados exatos sobre pessoas afetadas ou quantidade de doenças catalogadas. As informações são apenas estimativas do Ministério da Saúde, que dão conta de aproximadamente 13 milhões de brasileiros. De acordo com a Agência Europeia de Medicamentos (EMA), a estimativa é de que existam até 8 mil doenças raras documentadas. No RN também não há registro total de potiguares afetados. Os dados existentes para algumas doenças foram levantados pelos próprios familiares ou pesquisadores e depois chancelados pela Secretaria de Estado da Saúde Pública (Sesap).
O administrador Roberto Wagner Guedes, 37 anos, é uma das 38 pessoas diagnosticadas com Síndrome de Berardinelli no RN. A estatística só existe por iniciativa da mãe dele, Márcia Guedes, 65, que criou uma rede de apoio para pessoas com Berardinelli no Estado e fundou uma associação para aproximar famílias. “Mudei minha vida totalmente, até me formei em enfermagem para cuidar dele. Sai andando pelo Seridó, batendo de porta em porta, procurando casos parecidos porque os médicos não conheciam, até fundar a associação em 1998”, lembra Márcia. Em todo o País, o número estimado de casos é de 55, de acordo com o Instituto Vidas Raras.
A Síndrome de Berardinelli, também conhecida como Lipodistrofia Generalizada Congênita (LGC), é uma doença genética rara que se caracteriza pela ausência de tecido adiposo — não há armazenamento normal de gordura no corpo. A gordura fica concentrada em outros locais, como fígado e músculos. “Tenho uma vida de muitas dificuldades, muitas restrições alimentares, mas tento viver normalmente. Deus me deu essa condição e eu me sinto abençoado porque pude ajudar outras pessoas através da luta da minha mãe”, conta Roberto.
Descoberta
Outra síndrome rara com grande prevalência no Rio Grande do Norte é a Spoan – acrônimo de Spastic Paraplegia, Optic Atrophy, and Neuropathy. Com 73 casos, o RN concentra o maior agrupamento de pessoas com Spoan no Mundo. Também há registros da doença no Rio Grande do Sul (2); Minas Gerais (1); São Paulo (6); e no Egito (2), na África. Os dados foram repassados pela bióloga paulistana Silvana Santos, que era a responsável pela equipe que descobriu a doença em Serrinha dos Pintos, no ano de 2000. A cidade de São Miguel, no Alto Oeste, é a região com o maior número de casos registrados: 40.
A Spoan é uma patologia rara neurodegenerativa que causa efeitos nos movimentos das pernas e dos braços, além de afetar a fala e a visão. Na pequena Serrinha dos Pintos, 15 casos foram documentados. Entre eles está o de Paula Dayana Queiroz, 29, que também expõe a falta de uma rede pública de saúde bem estruturada para lidar com o tema, de acordo com a mãe de Paula, Elenara Queiroz. O diagnóstico tardio de Paulinha, como é mais conhecida, alterou a qualidade de vida da moradora de Serrinha dos Pintos, diz Elenara.
“Paulinha viveu até os 10 anos de idade sem o diagnóstico e eu já desconfiava que ela pudesse ter alguma doença. Ela tinha uns olhos tremidos, não conseguia andar, nem sentar direito. Levei ela em todo tipo de médico, fisioterapeuta, neurologista, pediatra e nada. Só fui descobrir mesmo em 2004, quando o pessoal da USP [equipe de pesquisadores da Universidade de São Paulo liderada pela bióloga Silvana Santos] veio aqui estudar a Spoan”, conta.
Consanguinidade é uma das causas
Com poucos casos, complicações diversas, sintomas variados, falta de informação e desconhecimento dos próprios médicos, as pessoas acometidas por essas patologias genéticas incuráveis acabam enfrentando uma dura caminhada até o diagnóstico, quando conseguem sobreviver. De maneira geral, as doenças raras são crônicas, degenerativas e causadas por alterações genéticas. Uma das explicações para a grande incidência da doença no Estado está relacionado à consanguinidade, isto é, o casamento entre pessoas com algum tipo de parentesco.
“Nós temos aqui no Rio Grande do Norte algumas cidades com 4 mil, 5 mil habitantes, com uma consanguinidade reconhecida na casa dos 30%. Isso significa que a cada três casamentos, um é entre pessoas da mesma família, que sabem que são parentes. Some isso aos casamentos de parentes que sequer sabem que são primos”, diz.
Em Serrinha dos Pintos, cidade de 4,8 mil habitantes, a prática é comum, principalmente no passado. Paulinha, que nasceu com a Síndrome de Spoan, é filha de agricultores que são primos de primeiro grau. Elenara e José se casaram há três décadas. “Naquele tempo era muito diferente, a gente via isso em novela, mas aqui sempre foi muito comum, era tido como uma coisa normal”, conta Elenara, que tem 54 anos e segue casada com José. Antes de Paulinho, o casal teve outra filha, que nasceu saudável, sem a patologia.
A consanguinidade também é causa da Síndrome de Berardinelli. “Além do rosto igual que eles têm, o jeito de andar, falar, sentar e até dormir porque todos eles dorme de pernas cruzadas, a consanguinidade dos pais é outra coisa em comum. No meu caso, quando o médico me perguntou eu falei que não, mas só depois com os exames de DNA foi que eu soube que nós tínhamos parentescos bem distantes, o que foi uma surpresa”, relata Márcia Guedes.
Centro especializado
Atualmente o Estado não conta com um Centro de Referência e também não possui política pública específica voltada para os pacientes de doenças raras. O espaço é um sonho antigo dos familiares e afetados por doenças raras. “A gente luta para isso, para que essa população seja conhecida e reconhecida. Desde muito tempo que batalhamos por isso. Não temos apoio, falta medicamento, aparelhos para diagnóstico. É muito difícil”, destaca Márcia Guedes, que fundou a Associação dos Pais e Pessoas com a Síndrome de Berardinelli (Asposbern), a única do País.
O médico geneticista João Neri – o único do RN – é especialista em doenças genéticas e também alerta para a falta de estrutura da rede pública para atender o problema. Segundo ele, o Estado não tem condições de fazer, por exemplo, o exame genético de cariótipo, utilizado para identificar doenças. “Nem isso a gente tem mais. É o primeiro exame que a gente faz para identificar síndrome de down, por exemplo. O Estado determinou que qualquer serviço prestado só pode ser feito por empresas do Estado e o Estado não tem empresa para fazer revisão de microscópio. Há pelo menos quatro anos isso está parado”, diz.
Neri diz também que o contexto contribui para o desconhecimento das doenças raras pela população e pelos próprios profissionais da saúde. “Isso dificulta tudo porque é uma série de fatores. Os próprios médicos não conhecem o panorama, às vezes tratam pontualmente um problema que é causado pela doença rara, mas sem saber da doença rara. O fato de não termos estatísticas também é outra dificuldade. O Brasil não tem tradição de fazer estatística”, afirma.
A Secretaria de Estado da Saúde Pública (Sesap) garante que está trabalhando para melhorar a assistência às doenças raras. “A Sesap está em fase de finalização junto ao Ministério da Saúde para que o Centro Estadual de Reabilitação e Atenção Ambulatorial Especializada (Cerae-RN) seja habilitado como o primeiro Centro de Referência em Doenças Raras do estado, com foco nas doenças genéticas”, disse a pasta em nota.
Ainda segundo a Sesap, o plano é que o serviço funcione em parceria com o Hospital Universitário Onofre Lopes (HUOL), “construindo assim uma linha de cuidados para doenças raras e abrindo a possibilidade para habilitação de serviços de referência em outras regiões do estado”. Em agosto, a Sesap realizará o II Seminário sobre Doenças Raras no RN, para “discutir a política e promover assistência adequada a esse público”.