Por que um abraço faz tanta falta durante a quarentena?

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Desde que iniciamos o isolamento – meus pais e minha irmã no interior de São Paulo, eu na capital –, temos conversado com uma frequência muito maior do que na época em que a vida era normal, quase sempre por vídeo. Almoçamos juntos, minha mãe me mostra suas orquídeas, eu mostro meus gatos, compartilhamos imagens do que estamos comendo. Estamos próximos, estamos bem, mas minha mãe outro dia me confidenciou: “O que eu sinto falta mesmo é de te dar um abraço, filha”.

Trago relatos pessoais aqui, mas todo mundo tem os seus. A saudade daquele abraço forte talvez seja a que mais dói nesses tempos tão incertos. Somos um povo acostumado ao toque, aos beijos, ao carinho fácil, é verdade, mas a falta que isso faz em meio à pandemia é tão universal quanto ela.

É do ser humano. É evolutivo. Nós aprendemos de bebê, com nossas mães, na amamentação, a importância do carinho. Mas até nossos parentes primatas sabem disso muito bem, tanto que criam laços no grupo ao catarem piolhos uns nos outros. A ciência – novamente ela – explica por que isso é tão importante.

A primeira evidência veio de série de experimentos, alguns deles cruéis, conduzida por um controverso, mas brilhante, psicólogo americano entre os anos 1950 e 60. Harry Harlow provou para um sociedade pós-guerra que não valorizava demonstrações de afeto – nem mesmo com crianças – que o amor não só é desejado como vital para o desenvolvimento da espécie.

O pesquisador usou macacos rhesus bebês para mostrar que o acolhimento, o aconchego físico, o amor transmitido via toque, são tão importantes quanto a própria alimentação.

Em seu laboratório na Universidade de Wisconsin, ele separou os filhotes de suas mães e os colocou na presença de duas estruturas bizarras de arame. Uma delas era apenas a armação. A outra foi coberta com um pano felpudo e ganhou uma carinha de macaco.

Harlow observou que os macaquinhos claramente preferiam ficar junto com a estrutura macia, mesmo quando a outra era equipada com uma espécie de mamadeira que lhes oferecia leite. Uma foto deste experimento mostra um macaquinho “no colo” da estrutura peludinha, se esticando para pegar o leite na “mãe” só de arame.

Os bebês também se esforçavam para abrir uma janela em que pudessem olhar a “mãe” coberta com pano e corriam em direção a ela quando se sentiam assustados com alguma coisa e precisavam de conforto. Por outro lado, quando só a estrutura de arame estava por perto, eles se sentiam inseguros, paralisados e não conseguiam explorar o ambiente.

O trabalho, apesar de controverso, acabou reafirmando a importância do amor e do carinho – em uma época em que se considerava que abraçar ou beijar crianças poderia deixá-las carentes e exigentes.

Outros estudos que se seguiram a esse revelaram que o contato físico é importante para desenvolver confiança e empatia e que isso teve implicações na evolução da espécie humana. Descobriu-se que beijos e abraços na infância podem até mesmo alterar o DNA.

“Um carinho modifica a expressão de nossos genes, a produção de oxitocina, o julgamento, o impacto sobre o desenvolvimento humano e sua falta pode ter consequências duradouras”, explica o neurocientista Stevens Rehen, professor da UFRJ e pesquisador do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (IDOR).

A oxitocina é um hormônio liberado num abraço afetuoso, no momento da amamentação, no sexo. Diversas pesquisas apontam que ela age como um neurotransmissor no cérebro, influenciando as interações sociais e até a reprodução. Tem um papel importante para formar laços entre as pessoas, propiciando comportamentos de empatia, generosidade, confiança. No nível individual, é importante inclusive como antídoto para sentimentos mais depressivos e ansiosos.

É algo que começa com a amamentação, como explica a psiquiatra Helena Brentani, cientista responsável pelo programa do espectro autista do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.

“Em um primeiro momento, a comunicação do bebê com a mãe é muito dependente do contato físico. Assim, no começo da vida o contato físico é a base para o aprendizado do cérebro sobre a definição do eu, do outro, reforçar e sinalizar laços e hierarquias sociais assim como programar sistemas relacionados ao estresse”, explica a pesquisadora.

Ela lembra um estudo de 2007 feito pelos pesquisadores americanos Arie Kaffman e Michael Meaney que mostrou que o comportamento de lamber filhotes ao nascer em ratos é fundamental para programar a reatividade a situações de estresse ao longo da vida, mediado por alterações epigenéticas (no funcionamento dos genes) no cérebro.

Contato muda o cérebro

Também para os humanos, a oxitocina impacta mecanismos interativos, relacionados a contato físico para o resto da vida. Helena cita outra pesquisa, de 2016, do alemão Jens Brauer, que mostrou que o contato físico muda o cérebro. “Os pesquisadores mostraram que a frequência do toque materno durante uma sessão de brincadeira entre mães e seus filhos de cinco anos estava associada à conectividade do cérebro”, afirma.

“Podemos dizer que precisamos de contato físico sempre. Isso propicia sensações e experiências que vão aumentando o repertório de conhecimentos do cérebro sobre o eu e o mundo. Isso ajuda a construção do nosso modelo mental do mundo, fundamental para que o cérebro possa fazer boas previsões, explicando sinais de entradas sensoriais. Isso nos garante reforço afetivo, social e motivação”, diz Helena.

E o que isso pode significar em tempos de pandemia? “Teoricamente a falta desse contato pode trazer alterações das respostas emotivas e da regulação do eixo hipotálamo-hipófise e portanto da percepção do estresse. Estudos mostram que animais e crianças com falta de contato podem ter mais ansiedade depressão ao longo da vida”, opina a pesquisadora.

“Somos seres sociais e o isolamento necessário diante da pandemia nos faz perceber mais fortemente a falta que faz o carinho em nossas vidas. Um abraço apertado é capaz de alterar o padrão de metilação (expressão) de nossos genes. A epigenética das relações sociais não acontece via zoom. Vai ter implicações para a nossa sociedade”, complementa Rehen.

Estadão

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