O Rio Grande do Norte teve 1.242 casos de estupro em 2023, um aumento de 30,2% em relação ao ano anterior, quando foram contabilizados 954 registros. O crescimento é o segundo maior do País, atrás apenas de Rondônia, onde a alta foi de 59,4%. Dentro do recorte total, outro dado coloca o RN na segunda posição entre as unidades federativas com maior elevação: os estupros de vulnerável aumentaram 36,9% de 2022 (com 707 casos) para 2023 (com 968). Neste recorte, Rondônia também assume a liderança no Brasil, com aumento de 64,6%. Em todo o País, os casos de estupro de vulnerável cresceram 7,5% no ano passado.
Os dados são do 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024. O estupro de vulnerável é um crime previsto no Artigo 217-A do Código Penal, que proíbe conjunção carnal ou prática de qualquer outro ato libidinoso com menores de 14 anos, bem como com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem discernimento para o ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.
Para o delegado Ricardo Eduardo, da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA) de Natal, os aumentos registrados pelo Anuário podem estar associados a uma maior quantidade de notificações das violências. Ele reforça, no entanto, que ainda existe muita subnotificação. “É sempre um desafio diagnosticar se há um aumento real de casos de estupro ou se os casos estão sendo mais notificados”, analisa.
“O que as pesquisas indicam, de todo modo, é que ainda há uma subnotificação exacerbada, de modo que o período da pandemia/confinamento, por exemplo, contribuiu negativamente para um menor registro dos casos, uma vez que as vítimas passaram mais tempo com seus agressores, que costumam estar dentro de casa, reduzindo o acesso das crianças e adolescentes às redes de apoio (escola, saúde, assistência social, conselho tutelar e segurança pública)”, completa o delegado.
Ele frisa a importância de políticas públicas de prevenção e educação para reverter os índices negativos. “Ainda há certo tabu para se falar sobre o tema, mas os números revelam que nosso País tem uma cultura de violência sexual histórica, sendo necessária ações estratégicas a nível, sobretudo de educação, mas também de saúde, assistência e segurança para que possamos prevenir e proteger a infância”, aponta Ricardo Eduardo.
Para chegar aos números gerais, o Anuário da Segurança Pública divide os dados por casos de estupro e casos de estupro de vulnerável. Considerando-se apenas o primeiro recorte, o RN também registrou alta no comparativo dos dois últimos anos: enquanto em 2022 foram notificados 247 casos de estupro, no ano passado, o número passou para 274, crescimento de 10,9%. O índice também é superior à média do País, que sofreu variação de 5,5% no período.
Na contramão, alguns estados apresentaram redução nos registros. Foi o que ocorreu em Roraima, que diminuiu em 23% os casos de estupro (a maior redução do Brasil) e Rio Grande do Sul, que reduziu os estupros de vulneráveis em 6,3% entre 2022 e 2023. Em números absolutos, São Paulo apresentou mais casos de estupro (3.373), bem como de estupro de vulneráveis (11.141) no ano passado.
Tentativas de estupro também aumentaram
De acordo com os dados do 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, as tentativas de estupro de vulnerável cresceram 97,9% em 2023 no Rio Grande do Norte, a maior alta do País. Se em 2022 foram 48 tentativas, no ano passado, esse número subiu para 95. O Espírito Santo e o Distrito Federal apresentaram redução – de -32,6% e 32,5%, respectivamente. No Brasil, também houve queda, de 3,4% (foram 4.899 tentativas em 2022 e 4.733 no ano passado).
O psicólogo João Costa, da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Regional de Psicologia do RN (CRP-17/RN), explica que os números apresentados pelo Anuário indicam que o Estado segue sem conseguir combater as diversas causas que envolvem o problema. “Um dos principais pontos é a violência de gênero. Temos a prevalência do machismo, da cultura patriarcal e uma ideia de supremacia do gênero masculino”, explica Costa.
Os dados apontam que, dos 247 estupros registrados em 2022, 238 tiveram mulheres como vítimas. Já no ano passado, elas foram 267 de um total de 274 vítimas. João Costa, do CRP/RN, chama a atenção para os efeitos deste tipo de crime. “São traumas psicológicos profundos, como depressão, ansiedade e dificuldades de relacionamento. Também é comum que as vítimas sintam vergonha e culpa, mesmo sabendo que não foram responsáveis pelo ato. Além disso, a experiência pode levar ao isolamento e essas pessoas acabam se afastando da família e dos amigos”, esclarece o psicólogo.
Costa também defende que uma primeira abordagem para reverter o cenário começa pela educação e conscientização da sociedade sobre a temática. “A população precisa passar por uma processo de aprendizagem sobre o tema para reduzir o estigma em torno das vítimas e encorajar a busca por ajuda”, diz. A implementação de políticas públicas, ele aponta, também precisa integrar os esforços para arrefecer este tipo de crime.
“A implementação de políticas públicas é crucial para garantir que as vítimas recebam o suporte necessário e para que haja medidas preventivas em relação à violência sexual. Neste ponto, o trabalho da Psicologia visa proporcionar condições para o fortalecimento da autoestima, o restabelecimento da proteção e da convivência em condições dignas de vida e deve contribuir para superação da situação de violação de direitos, além da reparação da violência sofrida”, comenta o psicólogo.
Rede de apoio é necessária para prevenção
A criação de uma rede de apoio sólida também deve estar entre as ações para reduzir os casos de estupro no Estado e no País. O atendimento às vítimas, de acordo com o psicólogo João Costa, envolve uma abordagem intersetorial e interdisciplinar. Mas não é só isso. “É importante, ainda, que a política de Estado garanta o atendimento aos autores de violências para que se quebre o ciclo de produção de violações de direitos”, alerta.
O delegado Ricardo Eduardo, da DPCA, ressalta que denunciar os abusos é fundamental para que a polícia atue de maneira eficaz contra estes casos. “As denúncias podem ser feitas nas delegacias, inclusive, de forma anônima. Em muitos casos a pessoa que deseja denunciar tem medo de sofrer represálias, motivo pelo qual vários canais de atendimento podem ser utilizados de forma sigilosa, como o Disque 100 e o Disque 181”, diz Eduardo.
“Importante registrar que a legislação determina que a notificação e a denúncia são obrigatórias, podendo responder criminalmente aqueles que tomam conhecimento da situação de abuso e não denunciam”, acrescenta o delegado. Josiane Bezerra, secretária de Políticas para Mulheres da Secretaria de Estado das Mulheres, Juventude, Igualdade Racial e Direitos (Semjidh), reforça que as denúncias são primordiais para que seja garantida proteção às vítimas.
“Se identificadas violências do tipo, a denúncia é indispensável. É por meio dela que se consegue acionar o Conselho Tutelar, no caso de a vítima ser criança, e outros órgãos, para o combate desse tipo de violência”. A gestora reconhece que o aumento de casos é um desafio, mas afirma que tem havido esforços para reverter a escalada dos números. “Nós entendemos que é preciso fortalecer o que já vem sendo feito no Rio Grande do Norte”, declara Bezerra.
Ela ressalta que houve aumento das delegacias da Mulher e ampliação da atuação da Patrulha Maria da Penha. “Também tem havido expansão dos centros de Assistência Social, além de casas de apoio para as vítimas”, discorre.
A secretária avalia que os aumentos registrados no RN são assustadores. Por isso, ressalta, é preciso investir em educação. “É necessário uma sensibilização maior. Nos casos que envolvem crianças, elas precisam de algum responsável, um coordenador pedagógico ou um diretor, que possa acionar todo o resto da rede de proteção”, detalha Josiane Bezerra.