Sem vacina, pandemia será severa até 2022

Epicentro da pandemia, o Brasil vê o número de casos e mortes aumentar a cada dia em descompasso com a vacinação, que teve a previsão de doses para março reduzida. Mantido o atual ritmo, o Brasil pode chegar a 15 milhões de infectados e a 100 mil casos por dia, na média móvel, antes do fim de março, segundo projeções do cientista da USP de Ribeirão Preto Domingos Alves, do portal Covid-19 Brasil. Usando um modelo conservador, ele projeta que o país chegará a 70 mil casos diários na média móvel na semana que vem.

A devastação da Covid-19 não cessa e Alves estima que o país chegará a 300 mil mortos entre 25 e 27 de março, talvez antes. A previsão se baseia em uma taxa de 1.500 mortes por dia. Porém, Alves também avalia que devemos alcançar a marca de 2.000 mortes diárias, na média móvel, até o fim da semana que vem. E até o dia 26 , calcula, poderemos ter 3.000 óbitos por dia.

O país vacinou, até a noite de sexta-feira, apenas 4,50% de sua população, e somente 1,64 % tomaram as duas doses. Mas, na quarta, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, reduziu de 30 milhões para de “de 22 a 25 milhões” as doses que devem chegar até o fim do mês. Foi a quinta diminuição no cronograma de vacinação do governo. A cobertura vacinal de 70% da população, considerada a mínima necessária para uma imunidade coletiva, não será alcançada antes do fim do ano, afirmam especialistas.

Para a volta à normalidade, três variáveis devem ser consideradas, afirma o vacinologista Herbert Guedes, professor do Instituto de Microbiologia Paulo de Góes/UFRJ. São elas os números de vacinados, de casos graves de Covid-19 e de novos casos. Somente quando o de vacinados aumenta ao passo que os demais diminuem, será possível pensar em flexibilização de medidas coletivas e pessoais.

—O atual cenário é o de esgotamento do sistema de saúde e de total descontrole do coronavírus devido à falta de uma política pública nacional contra a pandemia. Nunca fizemos distanciamento corretamente e tampouco agora temos vacinação em massa, com falta de doses e de logística. É impossível neste momento saber quando a vacinação terá impacto no Brasil — afirma a sanitarista e epidemiologista Carla Domingues, que esteve à frente do Programa Nacional de Imunizações (PNI) por oito anos (2011-2019).

A seguir, especialistas analisam o cenário atual e dizem o que esperar dos próximos meses de pandemia no Brasil.

Que percentual de população vacinada deveremos ter para reduzir as internações e mortes?

É incerto. Mas Domingos Alves diz que é possível ter uma ideia, se forem tomados como referência os dados de Israel, um dos países mais avançados do mundo na vacinação e que observou uma redução de 60% em internações e mortes, quando vacinou 30% da população.

E quando isso deve acontecer no Brasil?

Em cerca de um mês, o país conseguiu vacinar, no máximo, 2,41% da população com a segunda dose. Nesse ritmo, para chegarmos a 30% da população vacinada, levaremos 19 meses, diz Alves. Alguns estados poderiam conseguir em 15 meses, mas, mesmo assim, não chegariam a 30% antes de junho de 2022. Alves calcula que, para reduzir óbitos e internações com vacinas até dezembro de 2021, teríamos que vacinar por mês 3,1% da população. Isso significa dobrar a taxa atual.

Até chegarmos a uma cobertura vacinal mais ampla, o que precisamos fazer?

Especialistas são unânimes em destacar a necessidade de que, após mais de um ano de Covid-19 e de 270 mil mortes, o Brasil finalmente tenha uma política pública definida contra a pandemia, com medidas mais duras e amplas de distanciamento social. Eles avaliam que foi justamente esta falta de política pública levou o Brasil ao desastre. Carla Domingues afirma que até agora só houve lockdowns curtos e localizados após o vírus sair de controle, e não uma estratégia preventiva. Ela destaca ainda a falta de segurança nos transportes públicos, focos importantes de transmissão.

Mesmo com a vacinação em curso será preciso abrir mais leitos e contratar mais profissionais de saúde?

Sim, porque a maior parte da população continuará desprotegida e a pandemia avança sem controle, com a quase totalidade dos centros urbanos à beira do colapso sanitário, dizem os cientistas. Além disso, como a vacinação avança lentamente, as pessoas continuam a adoecer. Jovens e crianças, cuja internação por Covid-19 tem aumentado, não estão entre os grupos vacinados este ano. Domingos Alves lembra que hoje muita gente morre na fila, à espera de internação. No Brasil, as pessoas morrem por falta de assistência, pontua Guedes. Por isso, garantir leitos e médicos suficientes é fundamental.

E que outras medidas devem ser tomadas?

Carla Domingues diz que é preciso organizar a vacinação e fazer campanhas de imunização e de distanciamento social e uso de máscara. Ela lembra que, em vacinações passadas, o Ministério da Saúde fazia campanha nas TVs e em outras mídias, as Forças Armadas apoiavam a imunização, havia contratações para acelerar a aplicação de doses. Segundo ela, agora o ministério não forneceu apoio estrutural, não há um centavo para as campanhas. Somado a isso, há caos entre estados e municípios, carentes de uma política nacional. Cada um faz o que e como deseja para vacinar e decretar medidas de contenção.

Que dificuldades têm a imunização no Brasil?

Garantir que as pessoas recebam a segunda dose, assegurar que as doses sejam do mesmo imunizante e medir a efetividade das vacinas. Segundo Carla Domingues, o Brasil não fez pré-cadastro dos vacinados, têm ocorrido casos de pessoas que misturam vacinas diferentes e o país continua a testar pouquíssimo. Com isso, não sabe a real taxa de positividade.

Essas medidas podem ser flexibilizadas à medida que a margem de cobertura aumenta?

Só se houver também uma redução das taxas de transmissão e de mortes, destaca o vacinologista Herbert Guedes.

Que impacto a vacinação de idosos e de grupos com comorbidades poderá ter sobre o sistema de saúde?

Um enorme impacto positivo, com a redução significativa de internações e mortes por Covid-19.

O que já se sabe nesse sentido?

Em países que já imunizaram significativa parcela da população os resultados são altamente positivos. Israel, que vacinou praticamente a totalidade de sua população idosa e cerca da metade dos demais habitantes já tomou uma dose, teve uma redução de 90% dos casos graves. Na Escócia, cinco semanas após a primeira dose da vacina da AstraZeneca/Oxford, houve uma redução de 94% das internações por Covid-19.

E no Brasil?

Os dados ainda são preliminares, mas muito bons. Na capital paulista, as mortes de pessoas com mais de 90 anos tiveram uma redução de 70% após a vacinação. Em Pernambuco, o governo do estado informa que diminuíram as internações de idosos acima de 85 anos.

Qual o prazo estimado para que seja alcançada imunidade coletiva no Brasil?

Quando 70% da população estiver vacinada, o que especialistas chamam de “número mágico”. É, no entanto, apenas uma estimativa, destaca a epidemiologista Carla Domingues. O vacinologista Herbert Guedes explica que 70% significa que sete em cada dez pessoas estarão protegidas, com um impacto positivo significativo. Se o governo aplicar todas as vacinas que prevê adquirir em 2021 esses 70% só serão atingidos, no cenário mais otimista, em nove meses. Mas o atual ritmo de vacinação, muito lento, pode apontar para um calendário ainda mais distante.

Por que antes disso não haverá garantia de proteção coletiva?

Porque o vírus continuará a circular e muitas pessoas ainda poderão adoecer. As vacinas têm evitado a Covid-19 grave e a morte. Mas, lembra Domingues, não existe comprovação de que impeçam a infecção assintomática ou leve. Isso significa que vacinados podem, em tese, continuar a transmitir o coronavírus. Ninguém estará liberado este ano, diz ela.

O que pessoas imunizadas já podem fazer?

Pessoas com imunização completa, isto é, aquelas que tomaram as duas doses e já completaram duas semanas após a última inoculação, podem se encontrar com outras na mesma situação sem o uso de máscara, mesmo em ambientes fechados. Segundo o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC) , elas também podem se encontrar com outras pessoas de baixo risco, mesmo que estas não tenham sido vacinadas. Também não precisam se quarentenar ou se testar, caso sejam expostas ao coronavírus. Porém, elas precisam continuar a usar máscaras em locais públicos, pois não há garantia de que não possam ser contagiosas. O CDC diz ainda que até o momento a recomendação é a manutenção dos cuidados de distanciamento social e uso de máscara.

Por que nos EUA essas medidas já são possíveis?

Os EUA têm o maior número de casos e mortes do mundo, mas desde janeiro conseguiram uma redução espetacular nas taxas de casos e mortes. A média móvel este mês caiu 75% em relação a janeiro. Além disso, vacinam maciçamente. O presidente americano, Joe Biden, declarou que todos os adultos do país deverão estar vacinados até o fim de maio. Com isso, terão milhões de doses excedentes. Em julho, estas serão suficientes para vacinar 200 milhões de pessoas.

As medidas se aplicam para pessoas totalmente vacinadas no Brasil?

Não. O Brasil vive o cenário oposto, transmissão em alta e vacinação em baixa. Domingues chama a atenção de que o atual cenário de pandemia descontrolada no Brasil, com recordes de números de óbitos e novos casos diários, impede que medidas de flexibilização individual decorrentes de benefícios da vacina possam ser tomadas. Só em dois ou três meses após a estabilização da pandemia, com redução de casos, será possível pensar em medidas de flexibilização para os vacinados.

Vacinados devem continuar a usar máscara?

Sim. Não existe ainda certeza de que não possam contrair e transmitir o coronavírus.

E poderão visitar amigos e parentes?

Sim, mas somente com uso de máscara e distanciamento, caso as demais pessoas não tenham sido imunizadas.

Quem já foi vacinado pode retomar atividades como ir ao cinema, à praia e a espetáculos?

Não. Só será possível pensar nisso depois que a chamada margem de imunidade coletiva for alcançada, em cerca de nove meses no Brasil. Isso porque as pessoas vacinadas podem não adoecer, mas poderiam transmitir o vírus. Não existe comprovação de que a vacina tenha impacto sobre a transmissão, salientam cientistas.

Como saberemos que as vacinas também estão controlando a transmissão?

Com testagem em massa, diz Guedes. O problema é que o Brasil nunca conseguiu testar sequer o mínimo necessário.

As vacinas são eficientes contra novas variantes do coronavírus?

Sim. Herbert Guedes explica que até agora os resultados alcançados mostram que as variantes conhecidas não impactaram a efetividade das vacinas.

E os estudos que sugerem que elas reduzem a produção de anticorpos?

Guedes e o virologista Amílcar Tanuri, da UFRJ, frisam que nenhum desses estudos é conclusivo e que nenhum testou as variantes de fato e sim os chamados pseudovírus, construções em laboratório para simular os efeitos do vírus real. Outros estudos são análises epidemiológicas. Apenas testes com os vírus isolados de pessoas e animais vacinados poderão oferecer respostas claras.

Existe vacina melhor para determinados grupos?

Não, todas são eficazes em reduzir o impacto da Covid-19. Deve-se tomar a primeira que estiver disponível, destacam cientistas.

Por quanto tempo dura a imunidade proporcionada pelas vacinas?

Não se sabe ainda.

As variantes são as responsáveis pela explosão de casos?

A resposta de especialistas é um sonoro não. Renato Santana, à frente de estudos com variantes na UFMG, explica que elas podem contribuir, mas não são as culpadas pelo descontrole da pandemia, resultado da falta de políticas públicas de contenção. As variantes são geradas pelo aumento da transmissão e ajudam a alimentar o ciclo vicioso da pandemia. Elas contribuem, mas não são o principal fator.

E qual é esse fator?

A falta de distanciamento social e uso de máscara, assegura Tanuri. Ele acrescenta que as variantes se tornaram uma conveniente desculpa para governantes que não promoveram medidas de contenção.

O aumento do número de internações de crianças e jovens é provocado pelas variantes?

Não há qualquer prova de que isso seja verdade, sequer existem estudos que sugiram isso. O vacinologista Herbert Guedes explica que, com a afrouxamento das medidas de distanciamento, crianças e jovens se expuseram mais e, por isso, um número maior deles foi infectado e parte adoeceu. Desde o fim do ano, o distanciamento social caiu drasticamente. Não é um problema de variantes, mas de matemática: com mais gente exposta, mais gente adoece, inclusive crianças e jovens. O maior número de crianças e jovens com Covid-19 é uma prova contundente da falta de política de distanciamento e do negacionismo de parte da sociedade, frisa Domingues.

O que fazer para proteger crianças e jovens?

Não há previsão de vacinas para crianças. Já os jovens são serão incluídos no programa de imunização por último. Sendo assim, as medidas de proteção são as conhecidas: uso de máscara e distanciamento social.

O Globo

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