O crescimento dos procedimentos estéticos no Brasil acende o alerta para um fenômeno que ultrapassa a vaidade. Em 2023, mais de dois milhões de cirurgias foram realizadas no país, segundo a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP). No Rio Grande do Norte, o aumento na procura também é notório. Esse aumento também pode desencadear problemas. A combinação de redes sociais, padrões inalcançáveis e promessas de transformação imediata está alimentando a chamada disforia de imagem, um transtorno mental que pode causar sofrimento profundo e duradouro.
A disforia de imagem, também conhecida como transtorno dismórfico corporal, é caracterizada por uma preocupação persistente e excessiva com supostos defeitos físicos que, na maioria das vezes, não existem ou são mínimos. De acordo com o psiquiatra Ernane Pinheiro, presidente da Associação Norte-rio-grandense de Psiquiatria (ANP), essa é uma doença real, que precisa de avaliação médica especializada. “Mesmo assim, a pessoa se vê deformada ou inadequada, o que causa sofrimento intenso e interfere negativamente na vida social, profissional e familiar”, explica.
Entre os fatores que contribuem para o desenvolvimento do transtorno, a exposição contínua a padrões irreais de beleza ocupa lugar de destaque. Ernane destaca que a baixa autoestima, histórico de bullying e exposição constante a padrões irreais de beleza são outros que contribuem para o surgimento do transtorno, especialmente entre jovens em ambientes hiperconectados. Nesses contextos, a comparação com imagens idealizadas se torna constante e imediata, ampliando o risco entre pessoas emocionalmente vulneráveis.
“Um dos principais fatores é a exposição constante a padrões irreais de beleza nas redes sociais, onde o uso de filtros, edições de imagem e cirurgias estéticas é muito comum”, aponta o presidente da ANP. A psicóloga clínica e especialista em saúde mental, Katarina Grilo, concorda e destaca os impactos emocionais dessa busca constante. “As pressões impostas pela própria pessoa divergem do resultado real, resultando assim em sintomas de ansiedade, depressão, insatisfação corporal, transtornos alimentares”, afirma.
Na avaliação de Marco Almeida, presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica do RN, os reflexos dessa realidade são visíveis. Ele observa que muitas dessas complicações são resultado da atuação de profissionais não habilitados, impulsionados por uma lógica mercadológica presente nas redes sociais.
A presença de profissionais não médicos realizando procedimentos invasivos é um fator de preocupação recorrente entre os especialistas. Ele destaca que essas pessoas se apresentam nas redes sociais como autoridades no assunto, com perfis bem produzidos e milhares de seguidores, criando uma ilusão de segurança.
A exposição a essas imagens e a crença em transformações radicais em curto prazo alimentam expectativas irreais. “Na rede social existe impulsionamento, tráfego pago, toda uma produção mediática leva muitas distorções da realidade”, critica Marco. De acordo com Ernane Pinheiro, a busca incessante por correções estéticas é comum em pacientes com disforia de imagem. “Mesmo após realizarem as intervenções, costumam permanecer insatisfeitos”, afirma.
Entre os sinais de alerta, Katarina Grilo destaca o isolamento social, a recusa em olhar no espelho e o sofrimento persistente. “O sofrimento é profundo”, pontua. O transtorno, segundo ela, pode acometer também homens, principalmente pela pressão estética relacionada à hipertrofia muscular. “Leva a padrões de beleza que cultuam o corpo, contribuindo para o uso excessivo de suplementos alimentares e anabolizantes”, explica a psicóloga, que vê uma expansão da demanda por estética em todos os gêneros e faixas etárias.
Segundo dados da Pesquisa Global Anual sobre Procedimentos Estéticos/Cosméticos da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (Isaps), a lipoaspiração foi o procedimento mais comum nos anos de 2023 e 2022 em todo o mundo, com mais de 2,2 milhões. Já os não cirúrgicos mais populares foram toxina botulínica, ácido hialurônico e depilação. O Brasil ocupou o segundo lugar em números totais de procedimentos.
Preparo emocional e limites
Com a observação de um aumento na procura por procedimentos estéticos associados a sinais de distorção da autoimagem, o preparo físico e emocional antes de qualquer intervenção é apontado como um fator que pode influenciar não apenas na segurança do procedimento, mas também na satisfação com os resultados. Para médicos da área, a identificação precoce de possíveis desequilíbrios, inclusive de ordem psicológica, é parte do processo de planejamento e decisão sobre a realização ou não das cirurgias.
Na prática clínica, Marco Almeida reforça a importância de uma avaliação completa das condições do paciente. “A gente tem que flagrar isso e colocar realidades normais, expectativas adequadas”, afirma. Para ele, o preparo emocional e físico do paciente são essenciais antes de qualquer procedimento. “O paciente vai ser submetido a um processo de estresse, principalmente físico e emocional. Então ele tem que estar equilibrado, ele tem que estar organizado emocionalmente”, diz.
As consequências dos procedimentos feitos sem avaliação técnica e acompanhamento adequado têm levado muitos pacientes a buscar apoio psicológico ou psiquiátrico após danos físicos e emocionais. Na avaliação de Ernane, muitos desses pacientes permanecem insatisfeitos, mesmo após cirurgias, e logo desenvolvem novas obsessões com outras partes do corpo. Por isso, o caminho ideal é o encaminhamento para avaliação psiquiátrica, e não a repetição dos procedimentos estéticos.
A pressão das redes sociais também se reflete nas expectativas dos pacientes. De acordo com o presidente da SBCP-RN, muitos chegam aos consultórios com imagens de celebridades e exigem resultados idênticos. “Uma das coisas que não pode acontecer jamais é um paciente chegar com foto de A ou de B ou de C e achar que vai ter o mesmo resultado. Isso não é verdade”, alerta Marco. Katarina reforça a importância de diferenciar a vaidade saudável do transtorno. “A vaidade saudável envolve um cuidado equilibrado com a aparência, sem que isso venha a interferir de forma negativa nas atividades diárias”, explica.
No campo da regulação, Marco Almeida defende maior fiscalização. “Isso vai ter que envolver Ministério Público, Secretaria de Saúde, muitos órgãos”, argumenta. Ele também critica clínicas que não divulgam quem são seus médicos responsáveis. Um exemplo é um estabelecimento de estética avançada com mais de dois milhões de seguidores, amplamente divulgado por influenciadores através de permuta, que apresenta um catálogo de procedimentos, mas não é possível verificar informações sobre quais são os profissionais que atendem, seja através do site ou redes sociais.
O risco da exposição midiática, segundo ele, é criar “uma realidade paralela”, onde todos aparentam ser felizes, ricos e bem-sucedidos. “As pessoas têm que ter a noção de que a rede social é muito interessante como meio de comunicação, mas muita coisa ali é manipulação de informação”, ressalta. Apesar das pressões, o médico considera que a cirurgia plástica pode ser positiva quando feita com responsabilidade. “A cirurgia adequada é aquela que eu olho, eu elogio, mas eu não sei que aquela pessoa foi submetida a uma cirurgia plástica”, define. Contudo, reforça que o excesso, as promessas de resultados imediatos e a banalização dos procedimentos colocam em risco a vida de muitos.
A psicóloga Katarina destaca que o tratamento psicológico é fundamental para todos os transtornos relacionados à imagem corporal. “Permite trabalhar as questões emocionais, pensamentos e comportamentos compulsivos em relação à urgência de um corpo ideal”, afirma. Em casos mais graves, o suporte multidisciplinar é necessário. “Incluindo psicólogo, psiquiatra, nutricionista, educador físico”, lista.
Já Ernane Pinheiro denuncia a precariedade do sistema de saúde no enfrentamento à disforia de imagem. “No setor público, há uma clara desassistência psiquiátrica. Já na rede privada, o custo elevado das consultas ainda é uma barreira”, aponta. A falta de informação e o estigma também dificultam o diagnóstico precoce. “É fundamental reconhecer o transtorno dismórfico corporal como uma condição médica séria”, afirma.
Antes de qualquer decisão sobre intervenções estéticas, especialistas recomendam atenção redobrada à saúde mental, com apoio psicológico ou psiquiátrico que ajude a compreender os reais motivos do desejo por mudanças no corpo. Avaliar o impacto emocional, as expectativas envolvidas e a relação com a própria imagem são passos fundamentais para garantir que a escolha não parta de uma necessidade compulsiva. Quando há indicação clínica e desejo consciente, é essencial procurar profissionais qualificados, que podem ser verificados no site da SBCP.
*Larissa Duarte – Repórter