No embalo de medidas para facilitar aquisição de armas do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), os registros concedidos bateram recorde em 2019 e atingiram o maior número das últimas décadas.
Até novembro, os novos registros concedidos pela Polícia Federal para posse de armas aumentaram 48%, passando de 47,6 mil em todo o ano passado para 70,8 mil nos primeiros 11 meses de 2019. O número é o recorde ao menos desde 1997, dado mais antigo obtido pela reportagem.
Em outubro, havia 1.013.139 registros de armas ativos no país, apenas no sistema mantido pela PF (Sinarm). Neste caso, a permissão é para a posse das armas, mantidas em casa e no comércio.
Os números foram conseguidos via Lei de Acesso à Informação e também no portal da CGU (Controladoria Geral da União), que abriga todos os pedidos realizados.
A conta de novas autorizações não inclui os registros para caçadores, atiradores e colecionadores, concedidos pelo Exército (sistema Sigma), também em alta. Neste caso, as novas armas passaram de cerca de 60 mil em 2018 inteiro para 65 mil nos primeiros 11 meses deste ano, uma variação de 8%.
Defensor das armas como instrumento de defesa, o presidente já editou oito decretos relacionados a assuntos relacionados a armas. As medidas facilitam autorizações e relaxam regras para impedir que pessoas sem porte de arma se locomovam com elas.
As medidas são criticadas por pesquisadores da área da segurança pública, por ampliar acesso às armas e também por serem contraditórias entre si, gerando insegurança jurídica.
Os dados mostram que o aumento vem ocorrendo desde os últimos anos e se acentuou com a chegada de Bolsonaro ao poder.
“Novos pedidos de licença e porte vêm aumentando faz alguns anos, ao menos desde 2017. Isso é fruto de uma promoção da arma de foto feita por um setor da sociedade e acaba sendo catalisada pela discussão recorrente da regulação de armas no Congresso Nacional”, diz o advogado Ivan Marques, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
De acordo com ele, o que muda é que agora esse discurso tem como garoto-propaganda o próprio presidente da República.
Os portes –que são autorizações para circular armado –vêm tendo aumento, mas, na comparação com o ano passado, a média mensal diminuiu. Passou de 719 por mês para 635. Se comparado com 2017, porém, houve um aumento de 55%.
Também houve alta das permissões para pessoas físicas andarem armadas —a média passou de 246, em 2018, para 280 por mês (14%).
Especialistas afirmam que, como não há consenso em relação ao porte nem mesmo no governo, as medidas promovidas neste ano acabaram não influenciando tanto em relação a este tipo de permissão mais abrangente.
Para Marques, um dos pontos que impediu um aumento ainda maior de armas em circulação é o preço mínimo, na faixa de R$ 3.500, acima do poder aquisitivo da maioria da população. A fabricante brasileira Taurus Armas, porém, planeja lançar a arma mais barata do mundo.
Enquanto isso, brasileiros têm buscado variedade e qualidade lá fora. Conforme mostrou a Folha, de janeiro a agosto, as importações de armas bateram recorde —foram 37,3 mil revólveres e pistolas. Nos primeiros oito meses do ano passado, para comparação, foram importadas 17,5 mil armas dessas categorias.
Os decretos editados pelo governo mudaram pontos como aumento da validade dos registros das armas de cinco para 10 anos; aumento da potência de armas permitidas aos civis; permissão a adolescentes da prática de tiro desportivo; permissão para porte de arma em toda a extensão de propriedades rurais; e flexibilização das regras para caçadores, atiradores e colecionadores, que prevê a possibilidade de transporte com armas municiadas.
Na esteira dessa mudança, os atiradores, por exemplo, tiveram aumento de 22% na média de permissões por mês. Elas passaram de 4.177, em 2018, para 5.105 neste ano. Na comparação de 2018 com os 11 meses de 2019, são 50.130 contra 56.161, respectivamente.
Presidente da Abate (Associação Brasileira de Atiradores Civis), o despachante especializado em documentos relacionados ao tema Henrique Adasz afirma que havia uma demanda represada.
“Os decretos trouxeram visibilidade ao tema. Até porque muita gente queria e nem sabia que poderia ter uma arma”, diz.
Ele afirma que, apesar de considerar que Bolsonaro fez tudo que estava ao seu alcance pela causa das armas, há ainda uma legislação restritiva sobre o assunto. “As mudanças mais profundas dependem dos legisladores”, diz.
Adasz afirma que as mudanças feitas pelo presidente deixaram algumas situações mais claras —para ele, por exemplo, o transporte das armas já era permitido e só ficou mais claro. Ele ainda defende que, em ano de aumento de armas, homicídios vêm caindo —dados preliminares apontam redução em torno dos 20%.
Para o coordenador do Instituto Sou da Paz, Bruno Langeani, as estatísticas de aumento de armas para os chamados CAC (caçadores, atiradores e colecionadores), somada à flexibilização das regras para eles, são muito preocupantes.
“Essas categorias acessam armas de calibre restrito e, claramente, o Exército já não vinha dando conta de fazer a fiscalização”, diz Langeani.
O instituto cita que decreto ainda em vigor permite que os CACs acessem ao menos cinco armas de cada modelo no caso de colecionadores, 30 armas aos caçadores e 60 aos atiradores.
A permissão de usar armas municiadas em trânsito —antes o entendimento corrente é que deveriam estar desmuniciadas e com guia explicitando o destino— é vista por ele como uma espécie de porte de armas disfarçado.
Langeani afirma também que o aumento de armas nos últimos anos tem relação direta alta nos assassinatos de mulheres. Para ele, a ligação está no fato de que autorizações para mais armas mantidas dentro de casa influencia num tipo de crime que ocorre predominantemente no ambiente doméstico.
De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, enquanto os homicídios caíram 10% no país no ano passado, o feminicídio aumentou 4%.
Outro efeito colateral de mais autorizações de posse apontado pelos especialistas é o fato de que mais armas vão desviadas e acabam nas mãos de criminosos. Conforme revelou a Folha, no estado de São Paulo, por exemplo, 53% dos furtos e roubos de armas acontecem dentro de casas e comércios. Das 11,5 mil ocorrências entre 2014 e 2018, 53% foram nesses lugares.