STF julga nesta quarta-feira processo sobre terras indígenas parado há 15 anos

O Supremo Tribunal Federal (STF) demorou 15 anos para retomar a votação de um processo que pede a anulação de títulos de propriedade concedidos a produtores que atuavam dentro de uma terra indígena no Rio Grande do Sul.

Entre o primeiro voto em plenário, em 2002, e a retomada do julgamento, marcada para esta quarta-feira, o relator da ação já se aposentou há 14 anos; nove ministros passaram pela presidência do tribunal sem pautar o processo; o caso acabou resolvido administrativamente, com a destinação definitiva da terra aos índios e indenizações pagas aos produtores; e, numa área ao lado, o conflito entre as duas partes segue em aberto, judicializado, com a derrubada na Justiça Federal de portaria que pavimentava a demarcação da terra indígena, baseada no argumento do marco temporal para essas demarcações.

O plenário do STF julga nesta quarta-feira três ações sobre demarcações de áreas indígenas e indenizações em razão da destinação dos territórios a populações tradicionais. Organizações que atuam em defesa dos direitos indígenas esperam que a votação no STF sinalize um entendimento sobre o marco temporal. No mês passado, em meio a concessões à bancada ruralista para se livrar da denúncia por corrupção feita pela Procuradoria Geral da República (PGR), o presidente Michel Temer aprovou parecer da Advocacia Geral da União (AGU) que estabelece um marco temporal para demarcações de terras indígenas. As informações são de O Globo.

Este referencial é de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. O entendimento vigente agora é que, para uma demarcação, deve-se levar em conta a presença de índios nas terras pelo menos a partir de outubro de 1988. O parecer é criticado por movimentos sociais em razão das diversas retiradas forçadas de populações indígenas de suas terras. As ações não tratam do marco temporal, mas o assunto pode aparecer nas discussões.

A ação referente ao Rio Grande do Sul começou a tramitar em 1994, e diz respeito à Terra Indígena Ventarra, de 753 hectares (área equivalente a 753 campos de futebol), na cidade de Erebambo. A área é tradicionalmente ocupada pela etnia Kaingang. Na ação, a Fundação Nacional do Índio (Funai) pediu a anulação dos títulos de propriedade concedidos a produtores que ocupavam a área.

Na última sexta-feira, a Coordenação-Geral de Identificação e Delimitação da Funai escreveu em um parecer que “o objetivo do pleito já foi alcançado pela via administrativa, já que o próprio estado do Rio Grande do Sul reconhece a nulidade dos títulos em discussão”.

“A área encontra-se na posse exclusiva do povo Kaingang e registrada integralmente em nome da União, tendo os próprios detentores dos títulos anteriores reconhecido o domínio da União em cartório”, conclui o parecer.

No mesmo dia, os advogados da União que atuam na Funai pediram a extinção do processo “sem resolução do mérito”.

Numa área ao lado, de 4.230 hectares, o desfecho não foi o mesmo. Em setembro de 2015, a 1ª Vara Federal de Erechim anulou uma portaria de 2012 do Ministério da Justiça que encaminhava a demarcação da Terra Indígena de Matto Preto. A portaria se baseava em conclusões da Funai sobre a ocupação da área por índios guaranis. Mais de cem produtores que exploravam a área entraram na Justiça contra a portaria. Segundo a ação, 300 pessoas vivem da agricultura familiar na área, um espaço onde também estão 70 indígenas dos grupos Chiripá e Mbya.

A Justiça foi favorável aos produtores exatamente em razão do discurso do marco temporal de 1988. “A atual ocupação dos índios guaranis na região de Matto Preto iniciou no mês de setembro de 2003 com um ‘acampamento de retomada’, em uma área pública às margens da rodovia RS-135 e do leito da ferrovia Santa Maria-Marcelino Ramos, sendo tal ponto incontroverso”, escreveu o juiz Joel Borsuk na decisão. A Funai recorreu ao Tribunal Regional Federal (TRF) da 4ª Região e ainda não houve um desfecho.

No STF, o caso dos Kaingang foi a plenário em 2002. O ministro Ilmar Galvão, que se aposentou do tribunal em 2003, votou pela declaração de nulidade dos títulos de propriedade expedidos pelo estado do Rio Grande do Sul para agricultores e fazendeiros. Em seguida, Nelson Jobim, também já aposentado, pediu vista. Desde então, o processo fez caminhos tortuosos no tribunal até chegar ao plenário novamente.

Com a aposentadoria de Jobim em 2006, o processo foi encaminhado para a presidência do STF. Em 2009, o plenário decidiu que enviaria o caso ao gabinete da ministra Cármen Lúcia, que substituiu Jobim no tribunal. Mas, por burocracias processuais, o processo só chegou ao gabinete da ministra em 2012, o mesmo ano em que a relatoria do caso foi transferida para Cézar Peluso – que se aposentou poucos meses depois.

Como o relator já votou, o tribunal não substituiu a relatoria. No entanto, o ministro que hoje ocupa a cadeira que foi de Ilmar Galvão e de Peluso não poderá participar do julgamento dessa ação – no caso, o ministro Luís Roberto Barroso.

Desde 2012, o caso estava com a tramitação parada e, em junho deste ano, Cármen Lúcia, já na presidência do STF, decidiu pautar a retomada do julgamento do processo em plenário para agosto. A demora para liberar o caso para votação pode ocorrer por vários motivos. Nesse caso específico, o mais provável é que a ministra estivesse esperando os outros processos semelhantes ficarem prontos para serem julgados ao mesmo tempo, para evitar decisões díspares do tribunal sobre um mesmo assunto.

Para Roberto Antônio Liebgott, coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a escolha dos três casos que serão julgados nesta quarta não foi por acaso:

– No nosso entendimento eles escolheram esses três casos porque eles discutem o conceito de tradicionalidade e originalidade de terras indígenas, e também porque neles são questionados pelos ‘não índios’ os títulos das terras.

Das três ações, a mais antiga foi apresentada há 31 anos, pelo governo de Mato Grosso, e ainda não começou a ser julgada. O Estado pede indenização pela desapropriação de terras incluídas no Parque Indígena do Xingu, criado em 1961. Outra ação chegou ao STF no ano , também de autoria do Mato Grosso, com pedido de indenização referente a terras dos povos Nambikwara e Pareci.

As ações começaram a tramitar no STF em 1986 e 1987, sob a relatoria dos ministros Oscar Corrêa e Djaci Falcão, já aposentados há muito tempo. Hoje, as duas causas estão sob a relatoria do ministro Marco Aurélio Mello.

Também nesta quarta-feira, o STF vai julgar regras para a demarcação de terras de povos quilombolas. São quatro processos, que chegaram ao tribunal a partir de 2004. Apenas um deles começou a ser julgado, uma ação de autoria do DEM. Peluso, em 2012, votou pela inconstitucionalidade do decreto presidencial que demarcou terras quilombolas. Rosa Weber votou de forma oposta. Dias Toffoli pediu vista e liberou o processo para ter o julgamento retomado em plenário em 2015, mas somente agora o caso será retomado.

Desde que tomou posse na presidência do tribunal, em setembro do ano passado, Cármen Lúcia tem priorizado processos que tramitam há muito tempo na corte, para tentar “limpar” a pauta. Especialmente agora, que o país vive profunda crise política e econômica, Cármen tem aproveitado essa bandeira para escapar de controvérsias que possam influir diretamente na política ou nas finanças do Brasil. Julgar a briga histórica dos índios neste momento, portanto, pareceu a saída ideal para a ministra.

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